« A Leitura Infinita – Escritura e Interpretação »

por José Tolentino Mendonça


Há uma pequena novela de Gustave Flaubert[1] sobre  Santo António Abade que oferece, ao leitor, esta espécie de parábola: agitado por tentações enormes, o santo eremita pede a Deus coragem e abre a Bíblia sucessivamente (cinco vezes, precisa a novela) em busca de auxílio. Das cinco vezes, porém, fecha o livro e as mãos tremem-lhe. É que as obsessões contra as quais ele luta, no esforçado caminho da ascese, vêm ainda mais incontroláveis, ao seu assalto, nas descrições do texto sagrado. Por exemplo, nos Atos dos Apóstolos, há uma voz do céu que ordena ao apóstolo Pedro que coma de uma grande toalha que desce sobre a terra, cheia da impureza de répteis e quadrúpedes. Ora, uma das tentações que atormentam o nosso monge respeita precisamente ao jejum. Em outros passos que lê, no Antigo Testamento, a violência, o sangue e o desmando moral são traços caracterizadores de tantas personagens. Assim, a sua situação complica-se e, à medida que folheia a Bíblia, a insegurança não para de crescer. Michel de Foucauld diz, num comentário sobre a obra de Flaubert, que agora lhe serve de prefácio[2], que o fundador do monaquismo cristão percebe, com esta inusitada experiência, que «o Livro é o lugar da tentação» e mais ainda: que, em certo sentido, não pode deixar de sê-lo, pois é o próprio texto a requerer uma hermenêutica que nos impeça de caír no sem-sentido. 

Em resumo: a história que Flaubert constrói sobre António Abade conta-nos o quê? Penso que ilumina uma dimensão fundamental da hermenêutica do texto bíblico, que não deve ser esquecida jamais: que é inútil impor ao texto um programa prévio de compreensão, quando nos é pedido precisamente o contrário. Isto é, que nos expúnhamos ao texto – que é sempre «obra aberta», como Umberto Eco recorda – dispostos à aventura que a interpretação necessariamente constitui. É disso, desta aventura, que o presente percurso se ocupará.


[1] G. FLAUBERT, La Tentation de Saint Antoine (Paris : Gallimard, 1967).

[2] M. FOUCAULT, Preface in G. FLAUBERT, La Tentation de Saint Antoine (Paris : Gallimard, 1967), 5.

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