Luiz Carlos Susin – « O Povo Cordeiro de Deus »

3. O Povo Cordeiro de Deus

 A cruz é violência sofrida. Recapitulando com René Girard, podemos classificar a violência em três níveis: a) a violência do mimetismo do desejo, que provoca perda de fronteiras, indiferenciação e caos; b) a violência convergente e unificadora que se abate sobre uma vítima expiatória, unanimidade sobre um bode expiatório, que pode ser até um povo, e que purifica o corpo social assim como um furúnculo purifica um organismo; c) finalmente a violência da ordem imposta pela lei e pela cultura ungida pela memória e pelo rito substitutivo da vítima. Mas assim se fecha o círculo sobre a violência não reconhecida como tal e, ao invés, glorificada, onde a vítima é cultuada como herói.  Ou seja, a estabilidade se firma sobre uma injustiça e uma mentira. E, portanto, tudo irá recomeçar num círculo infernal sem real saída. 

O fio dourado da Escritura, desde Abraão, em seu dilema e em sua prova, culminando no drama pascal de Cristo, é o reconhecimento da inocência da vítima, desautorizando a perseguição e a formação de vítimas aparentemente justificada. De tal forma que, como já foi mencionado, a vítima não é mais vista como bode expiatório mas como cordeiro. Ela não aplaca um Deus, mas é revertida por Deus em revelação da salvação com reconhecimento, justiça e misericórdia. É a “victima paschalis” que exorciza a violência e a mentira e introduz paz fundada na verdade e no perdão. Estamos aqui, ao denominarmos a vítima pascal, no fio da navalha, com linguagem rigorosa, pois a vítima inocente reconhecida ao mesmo tempo assume toda violência e liberta de todo sistema que produz violência. Não esconde nem suaviza o fato da violência, mas rompe desde dentro os seus avatares e metamorfoses. É necessário muito rigor na linguagem para não deslizar semanticamente para trás. Por isso convêm diversas abordagens ancoradas na Escritura. 

a) O cântico do Servo Sofredor é precedido, no Dêutero-Isaias, por três outros cânticos em que o servo é chamado a ser luz das nações com a eficácia de sua palavra, e encorajado a perseverar em sua vocação de testemunha da justiça em meio a um mundo de trevas e perseguição. Assim se chega ao quarto cântico, e dele o servo sai com um segredo iluminado: Deus estava com ele, e, assim, “por suas chagas fomos curados” (Is 53, 5b; 1Pd 2, 24b), chagas de um inocente em relação ao mal sofrido e forte em sua vocação e fidelidade. 

b) A seu modo observamos também a repercussão no hino da kenosis e da doxa em Filipenses 2, 6-11 como modelo para os interlocutores da carta, que, antes disso são exortados a servirem-se uns aos outros e a terem os “mesmos sentimentos de Cristo”: a decisão de esvaziamento da condição divina, a perseverança na forma de servidor que humaniza, a violência da morte infame e desumana. Mas o fio dourado segue: “Por isso” (diò kaì) foi exaltado com um nome no qual se reconhece a sua participação na glória do Pai: Kyrios. Não se trata de uma glorificação narcisista ou triunfalista, mas para que haja afinal participação na glória. 

c) No livro do Apocalipse esta participação se dá na glória, na vida e na paz do Cordeiro. A figura do Cordeiro traduz bem o evento de libertação de toda violência e morte a partir de dentro e de baixo da própria violência. Na Escritura a palavra “cordeiro”, no singular, ocorre 119 vezes, das quais 38 vezes – praticamente um terço – se concentra no livro do Apocalipse. O Cordeiro administra o livro da vida, abre as páginas seladas da história, abre o futuro. Dito de outra maneira: o Cordeiro é o futuro da história, o futuro está em sua figura. 

Na última página da Escritura, Apocalipse 21 e 22, encontramos o Cordeiro Redivivo no centro da Cidade Santa. Ele mesmo é o templo e a lâmpada da luz divina em meio à praça verdejante. Dele nasce uma fonte e um rio que alimentam árvores de vida. Estas por sua vez, dão frutos o tempo todo, curando as nações e sustentando a vida eternamente. A Cidade Santa é a “esposa” do Cordeiro, está no centro de um paraíso de Novos Céus e Nova Terra. Não é o paraíso original recuperado mas um paraíso plenificado, com uma cidade que não existe nas origens, antítipo das primeiras grandes cidades de Caim e de sua descendência, as cidades cimentadas na violência do sangue derramado. O retábulo da Adoração do Cordeiro de Ghent retrata de forma plástica a multidão em paz, em reconhecimento e ação de graças, não a turba assanhada desejando que o sangue da vítima caia sobre ela. Este grande final com um olhar para o futuro escatológico parece bonito demais para crer. Decide-se aqui o esforço de Ellacuría para unir o Crucificado ao povo crucificado assim como o esforço de Moltmann para unir o Crucificado a Deus. O Cordeiro está vivo e resiliente, dando vida à multidão imensa de cordeiros inocentes que não tem poder e nem sequer conhecimento – inocentes – de tudo o que lhes passa e lhes pesa de violência em suas vidas, na procissão da história do mundo. Há o séquito histórico de carne e osso do Cordeiro que não deixa o sonho do autor do Apocalipse e do retábulo de Ghent se evaporar. O Cordeiro se constitui hoje de povos de países do sul do mundo inocentemente afetados pela mineração criminosa que contamina suas águas e seus corpos, afetados pelas máquinas poderosas que devastam suas florestas e impõem a monocultura de exportação sem que eles possam ser ouvidos. E são milhares de crianças inocentes que nem imaginam porque sofrem bombardeios e perdem casa e família na Síria, no Iraque, e em tantas outras conflagrações por cima de suas cabeças. E são as mães com seus filhos pequenos de olhos grandes que embarcam em busca de refúgio sem saber se sua migração vai chegar a algum destino. E jovens com sonhos roubados e amargura e revolta para beber. É o povo cordeiro de Deus: neles a vítima pascal retorna não como um fantasma que se levanta do porão da história para assombrar e perturbar, mas como sinal e possibilidade de perdão e de redenção, enfim de paz e nova inocência, cordeiro pascal, de libertação para um mundo novo, oferenda imensa que pode ser aceita ou recusada. Quando, além do uníssono da confissão do “Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo” na Eucaristia, houver também o reconhecimento e a confissão unânime a respeito da inocência das vítimas silenciosas, então a redenção se faz história. E o tempo que resta pode ser, segundo a lição de Sobrino junto ao povo crucificado entre os poderes de El Salvador, tempo de “baixar os pobres da cruz”, reconhecendo neles o nome do Cordeiro.


Autor

Luiz Carlos Susin, capuchinho, Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, professor na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre, Brasil. Estudou a antropologia messiânica de Emmanuel Lévinas, participou de seminário com René Girard. Membro fundador e ex-presidente da Associação de Teologia e Ciências da Religião do Brasil, atual secretário geral da delegação Teologia e Libertação no Fórum Social Mundial. Foi membro da equipe de redação de Concilium de 2001 a 2015. Publica livros e artigos na área de antropologia teológica. 

Endereço: Rua Juarez Távora, 171 – Porto Alegre/RS Brasil ZIP 91520-100

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