Leonardo Boff – « Masculinidades clericais »

Leonardo Boff « Masculinidades clericais e o paradigma da relacionalidade »

Não se pode falar in genere da masculinidade, pois ela é flexível e variável consoante as diferentes culturas e os diversos processos educativos e sociais que constroem a masculinidade concreta.[1]

Há um tipo de masculinidade clerical, própria da Igreja romano-católica devido à lei do celibato e que ganhou foco devido aos muitos crimes de pedofilia perpetrados pelo clero. O Papa Francisco em vários pronunciamentos foi logo à causa principal: “o flagelo do clericalismo é terrenos fértil para todas estas abominações”.[2]

Ao se referir ao clericalismo quer sinalizar a proeminência do status clerical celibatário e o uso abusivo de seu poder. Por sua natureza, deveria irradiar confiança e reverência face ao sagrado. Mas tem sido exercido para abusar sexualmente de menores.

Subjacente a estes abusos está a questão da sexualidade que a Igreja oficial se recusa a abordar com receio de que se venha questionar a lei do celibato. O celibato constitui uma estrutura funcional para esta instituição, sociologicamente entendida, como total, autoritária, masculina, patriarcal, hierarquizada, sem conferir poderes de decisão aos leigos e excludente das mulheres, às quais se nega a plena cidadania eclesial.

Não se conhecem documentos oficiais da Igreja que alguma vez, positivamente, se confrontaram com as contribuições sobre a sexualidade de Sigmund Freud, de C. G. Jung, de Jacques Lacan, de Carl Rogers, de Raewyn Connell, de Marga J. Ströher, de Elizabeth A. Johnson, de Donald Winnicott e outros.

A Igreja institucionalde modo geral, alimentou historicamente uma atitude de desconfiança face à sexualidade, favorecida pelo patriarcado dominante.[3] Fez-se refém de uma visão preconceituosa, da tradição platônica e especialmente de Santo Agostinho. Este foi quem mais influenciou a moral cristã, especialmente no tocante à sexualidade. Ele via a atividade sexual como o caminho pelo qual entra o pecado original, que faz todo ser humano um pecador sem culpa pessoal, mas solidário com o pecado de Adão e de Eva. Quanto menos sexo procriatiavo, menos massa damnata(massa condenada).

A mulher, pela geração de filhos e filhas, introduz no mundo o mal originário. O anti-feminismo clerical encontra aqui, entre outras, uma de suas motivações, influenciado também pela cultura ambiente de cunho patriarcal. Esta leitura oferece as razões que sustentam a lei do celibato como valor teológico, porque, não havendo intercurso sexual-genital com uma mulher, não nascerão filhos e filhas. Portanto, não se transmitirá a desgraça do pecado original. Esta visão é reducionista e se concentra apenas na dimensão sexual-genital.

A Igreja institucionalde modo geral, alimentou historicamente uma atitude de desconfiança face à sexualidade, favorecida pelo patriarcado dominante.

Em todas as análises e condenações que se fazem e se fizeram da pedofilia e mesmo de outras formas de realização da sexualidade, não se discutiu o problema subjacente que é exatamente o da sexualidade em si mesma no contexto da vida humana.

A sexualidade é muito mais que uma visão sexual-genitalista. O ser humano não tem sexo. Ele é todo inteiro sexuado no corpo, na alma e no espírito: tem a ver com uma energia fontal, diria vulcânica, mas pela qual, pela natureza e pelo desígnio de Deus, se reproduz a vida na Terra.

Paul Ricœur, que muito refletiu filosoficamente sobre a teoria psicanalítica de Freud, escreveu: “A sexualidade, em seu fundo, permanece, talvez, impermeável à reflexão e inacessível ao domínio humano; talvez essa opacidade faz com que ela não possa ser reabsorvida numa simples ética nem numa técnica”.[4] Ela vive entre a lei do dia, onde vigoram as regras e os comportamentos estatuídos, e a lei da noite, onde funcionam a pulsão e a espontaneidade.

Só um projeto humanístico-espiritual, uma ética do respeito profundo face ao outro sexo e o autocontrole sobre a força instintiva sexual, pode fazer da sexualidade uma energia de amor, de relações fecundas e de humanização.

Sabemos como é insuficiente a educação para a integração da sexualidade na formação dos candidatos para o sacerdócio. Eles também participam do nosso tipo de sociedade, que ainda não superou totalmente o patriarcalismo e o machismo. De alguma forma são reféns desta cultura. Acresce ainda que os candidatos nos seminários, são afastados da família, da mãe e das irmãs. Este fato produz certa atrofia na construção da identidade. Há um excesso das características ocidentais da masculinidade: da racionalidade, da rigidez, do uso da força, da vontade de poder, das decisões, sem a correspondência equilibradora do feminino ocidental, da amorosidade, da ternura, da acolhida, do cuidado, da capacidade de diálogo, da intuição e da espiritualidade. O masculino clerical vem desta forma privado de algo essencial para uma completa humanização.

Só um projeto humanístico-espiritual, uma ética do respeito profundo face ao outro sexo e o autocontrole sobre a força instintiva sexual, pode fazer da sexualidade uma energia de amor, de relações fecundas e de humanização.

As ciências da psiqué nos deixaram claro que o homem só amadurece sob o olhar da mulher e a mulher, sob o olhar do homem. Homem e mulher são completos em si mesmos, mas por sua natureza, são seres de relação, são recíprocos e se enriquecem mutuamente na diferença.[5] Por que Deus criou a humanidade, enquanto homem e mulher (Gn 1.27)? Não primeiramente para gerarem filhos, mas para não ficarem sós, serem companheiros e serem um vis-à-vis ao outro (Gn 2.18.20).

Vale lembrar que não há um sexo absoluto, mas apenas um dominante. O sexo genético-celular mostra que a diferença entre homem e mulher, em termos de cromossomos, se reduz a apenas um cromossomo. A mulher possui dois cromossomos XX e o homem um cromossomo X e outro Y. Donde se depreende que o sexo-base é o feminino (XX), sendo o masculino (XY) uma diferenciação dele.

A sexogênese já possui dois bilhões de anos e mostrou que o feminino vem primeiro no processo da antropogênese. Só posteriormente surgiu o masculino.[6] Em cada ser humano existe, portanto, ‘um segundo sexo’. Em cada homem e em cada mulher existe a dimensão de anima (de feminino) e a dimensão de animus (do masculino). Na integração de animuse anima, presentes em cada pessoa, se gesta a maturidade humana e sexual e resulta um processo de individuação bem sucedido.[7]

Na educação para os futuros sacerdotes ou religiosos esta integração vem dificultada pela ausência de uma das dimensões, a da mulher. Ela é substituída pela imaginação e pelos fantasmas, que se não forem submetidos à disciplina e a uma profunda espiritualidade, podem gerar substitutivos e até perversões, entre as quais a pedofilia. 

Na educação para os futuros sacerdotes ou religiosos esta integração vem dificultada pela ausência de uma das dimensões, a da mulher. Ela é substituída pela imaginação e pelos fantasmas, que se não forem submetidos à disciplina e a uma profunda espiritualidade, podem gerar substitutivos e até perversões, entre as quais a pedofilia.

Neste processo, o celibato não é excluído. Ele é uma das opções possíveis. Mas o celibato não pode nascer de uma carência de amor, ao contrário, nasce de uma superabundância de amor a Deus que transborda aos demais, em especial, aos mais carentes de afeto.

Para realizar essa humanização no clero, far-se-ia necessária a abolição da lei do celibato obrigatório. Mas, através dele, se legitima a dominação masculina e excludente da atual estrutura da Igreja oficial. Só pessoas do sexo masculino podem ascender a cargos de direção e de animação da comunidade. Preferível seria o celibato opcional, uma opção que se inscreve no âmbito dos carismas, expressão de uma entrega total a Deus e à comunidade.

Já há muito que a teologia vem afirmando que não há nenhuma contradição doutrinária e dogmática que impeça à mulher ser também ela sacerdote, no estilo próprio da mulher.

Por que a Igreja romano-católica não abole a lei do celibato? Porque é contraditório à sua estrutura. Ela não possui um estilo comunitário. Ao contrário, é uma instituição total, autoritária, patriarcal e altamente hierarquizada. Uma Igreja que se estrutura ao redor do poder sagrado, concentrado em poucos homens (sacra postestas), realiza o que C.J. Jung denunciava: ‘onde predomina o poder aí não há amor nem ternura’.[8] É o que ocorre, comumente, com o autoritarismo e a rigidez nas estruturas eclesiais e nos seus ministros. O celibato é funcional à Igreja clerical, só e solitária.

Na educação para os futuros sacerdotes ou religiosos esta integração vem dificultada pela ausência de uma das dimensões, a da mulher.

Para corrigir esse vazio, o Papa Francisco não se cansa de pregar ‘a ternura e a misericóridia’,[9] o caráter comunional e sinodal da Igreja e, principalmente, o encontro não burocrático, mas terno e fraterno com as pessoas.

Ao perdurar este tipo de Igreja, dificilmente assistiremos à abolição da lei do celibato. Ele é útil para o seu modo de se estruturar e de se relacionar oficialmente somente entre homens, portadores de poder sagrado, excluídas as mulheres. Mas esse modelo dominante não é pastoral nem é bom para os fiéis, que esperam não apenas doutrinas, mas principalmente acolhida e iniciação à vida cristã.

O ser humano, por natureza, é um nó de relações voltado em todas as direções. A relacionalidade é o paradigma básico de sua existência e constitui, consoante grandes cosmólogos, a lógica mesma do universo. Nada existe fora da relação.   Deus criou a humanidade, enquanto homem e mulher (Gn 1.27) para, na diferença que não é desigualdade, trocarem e estarem juntos na relação e na comunhão, juntos na amizade e ne amor. Este seria o ideal-tipo da sexualidade masculino-feminina integrada e vivida por todos os seres humanos. O celibato não pode ser um empecilho para esta plena humanização. Ela não pode ser negada aos que servem à comunidade, pelo fato de viverem na condição de celibatários.


[1] Arnaud Baubérot, ‘Não se nasce viril, torna-se viril’, em Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello (eds.), A história da virilidade, vol. 3, Petrópolis: Vozes, 2013, pp. 189–220.

[2] Papa Francisco, ‘A proteção dos menores na Igreja’, 24/02/2019.

[3] Pierre Bourdieu, A dominação masculina, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1999, p. 103; Elizabeth Schüsser-Fiorenaza, Pero, Ella dijo, Madrid: Trotta, 1996, pp. 151–159.

[4] Paul Ricœur, ‘A maravilha, o descaminho, o enigma’, Revista Paz e Terra, 5 (1979), 36; Paul Ricœur, De l’interprétation: Sur Freud, Paris: Seuil, 1977.

[5] François Héritier, Masculin-Feminin: La pensée de la différence, Paris: Odile Jacob, 1996. 

[6] Leonardo Boff, ‘O processo da sexogênese’, em Leonardo Boff e Rose-Marie Muraro, Feminino-masculino: Uma nova consciência para o encontro das diferenças, Rio de Janeiro: Record 2010, pp. 26-29.

[7] Lerry Richards, Be a Man!: Becoming the Man God Created You to Be, New York: Ignatius Press, 2010.

[9] A ternura e a misericórdia constituem eixos importantes da pregação do Papa Francisco. Muitos dde seus discursos e homilias insistem sobre esses temas. Ver: Papa Francisco, Misericordiae vultus, O rosto da misericórdia: Bula de proclamação do jubieu extraordinário da misericórdia, São Paulo, Paulinas: 2015; Papa Francisco, Misericordia et misera: No término do jubilee extraordinário da misericórdia, São Paulo: Loyola, 2016; Papa Francisco, O nome de Deus é misericórdia: Uma conversa com Andrea Torrielli, São Paulo: Planeta, 2016.



Autor

Leonardo Boff, 1938, é teólogo, filósofo e escritor. Foi professor de teologia no Instituto Franciscano de Petrópolis por 22 anos e depois professor de ética e filosofia da religião na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, além de professor visitante em várias universidades. Suas publicações são nas áreas da teologia, filosofia, ética e ecologia. Vive em Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil.

Adress: Jesuit School of Theology of Santa Clara, 1735 Leroy Ave., Berkeley, CA 94709, USA.

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