2. Teologia e libertação

É o caráter e/ou dinamismo libertador da fé que em última instância possibilita e exige uma teologia libertadora que favoreça e fortaleza processos históricos de libertação. Certamente, uma fé libertadora não produz automaticamente uma teologia libertadora. O fazer teológico tem sua especificidade e seu aprofundamento exige saberes, conhecimentos, hábitos, métodos etc. que lhe conferem certa autonomia e irredutibilidade. Mas, enquanto intellectus fidei, o fazer teológico é um momento da fé, da qual recebe sua última determinação epistemológico-teológica. De modo que se uma fé libertadora não produz automaticamente uma teologia libertadora, só uma fé libertadora possibilita e exige uma teologia libertadora[8].

Ao falar de teologia libertadora, falamos de uma teologia que se constitui diretamente como intelecção de uma fé libertadora (dimensão intelectual) e como serviço intelectual a essa mesma fé (dimensão eclesial) e, indiretamente, através da fé, aos mais diversos processos históricos de libertação (dimensão social). Isso garante ao mesmo tempo a especificidade intelectual da teologia e seu caráter de momento da práxis eclesial e da práxis social mais ampla.

2.1. Momento da fé

É o caráter/dinamismo libertador da fé, enquanto modo de vida, isto é, ação/práxis libertadora, que em última instância confere à teologia – intellectus fidei – um caráter/dinamismo libertador. Por mais avançada, progressista ou revolucionária que seja uma teologia, se não estiver ligada a dinamismos ou processos concretos de libertação não passa de discurso ou teoria ineficaz. É o risco academicista de muitas teologias progressistas e dos modismos teológicos: teologias sem “cheiro de povo e de rua”, diria o Papa Francisco[9]; teologias “docetistas”, diria Jon Sobrino[10]. Só na medida em que é produzida a partir e em função de processos concretos de libertação e/ou é apropriada em processos concretos de libertação uma teologia se constitui como poder de libertação que favorece crítica e criativamente processos autenticamente libertadores. O que Ignacio Ellacuría dizia da filosofia[11], vale, mutatis mutandis, para a teologia: Ela só poderá desempenhar uma função libertadora se estiver visceralmente ligada a uma práxis de libertação.

A teologia latino-americana[12] é um exemplo muito claro de uma teologia que se constitui como teologia libertadora e/ou da libertação precisamente por estar vinculada visceralmente a uma fé vivida como e em processos de libertação. Sabe que não é suficiente e que por si só e automaticamente não produz libertação e por isso nunca se reduziu a uma “libertação da teologia” (Juan Luis Segundo). Ela se compreende como “momento do processo através do qual o mundo é transformado, abrindo-se […] ao dom do Reino de Deus” e, assim, como “teologia da libertação” (Gustavo Gutiérrez)[13]. Não tem como falar de teologia da libertação sem falar de processos históricos de libertação de camponeses, indígenas, operários, mulheres, sem teto, vítimas do agro-hidro-negócio, lutas de bairro, LGBTs etc. O próprio dessa teologia ou dessas teologias é a explicitação da dimensão propriamente salvífico-espiritual desses processos de libertação, o que faz com eles sejam compreendidos e vividos pelos cristãos como dimensão e exigência fundamentais da fé.

2.2. Momento intelectual

O fato de ser um momento da fé vivida como e em processos de libertação não compromete o caráter e a especificidade intelectuais da teologia no duplo sentido de “intelecção da fé” e de “serviço intelectual à fé”.

Enquanto intelecção da fé, a teologia só é possível no contexto mais amplo da fé. Não se faz teologia sem fé, nem apesar da fé nem muito menos contra a fé. Outra coisa bem diferente é a reflexão crítica sobre a fé e seus processos de reducionismo, manipulação e mesmo perversão, a ponto de a fé se constituir como poder-dinamismo de dominação e, assim, como negação prática de Deus e seu desígnio salvífico-libertador para a humanidade. Mas essa crítica só é possível na Tradição profético-sapiencial de Israel e de Jesus Cristo, a partir de onde a manipulação e perversão da fé aparecem como tais. E, aqui, o fazer teológico implica e exige tanto abordagem ampla e profunda da Tradição cristã que tem na Sagrada Escritura sua referência primeira e seu “cânon” permanente, quanto lucidez e criticidade com relação aos processos históricos de vivência da fé e sua possível/real instrumentalização e perversão no passado e no presente.

Enquanto serviço intelectual à fé, a teologia desempenha uma função crítica e uma função criativa no processo mais amplo de vivência da fé. Crítica tanto em relação a qualquer tipo de reducionismo da fé, quanto em relação às mais diversas formas de instrumentalização e perversão da fé na Igreja e na sociedade, quanto ainda em relação aos mais diversos processos históricos na sociedade, na medida em que eles se configuram, para além de qualquer intencionalidade e/ou pertença/confissão eclesial, como negação (pecado) ou como mediação (salvação) do desígnio salvífico-libertador de Deus para a humanidade. Criativa, no sentido de ajudar os cristãos a discernirem os desígnios e os apelos de Deus nas situações e nos contextos em que estão inseridos e a assumirem com fidelidade criativa esse desígnio e esse apelo, buscando os meios e as mediações necessárias, não obstante seus limites e suas ambiguidades.

É esse caráter crítico-criativo que faz da teologia, enquanto intellectus fidei ou momento intelectual da fé, um poder de libertação que favorece e fortalece processos históricos de libertação. Desvinculada de uma fé salvífico-libertadora, a teologia “além de despotencializar a práxis teologal requerida, deixa de ser um intelectus fidei para ser um estudo de inoperatividades”[14], quando não se transforma em oposição e negação práticas da fé, para além de toda aparência, verniz ou roupagem devocional-religiosa.

Conclusão

Se quiser ser consequente com seu caráter de intelecção (intellectus) de uma fé salvífico-libertadora (fidei), a teologia tem que estar visceralmente ligada a essa fé no duplo sentido de intelecção da fé e de serviço intelectual crítico-criativo à fé e, assim, constituir-se como poder de libertação no mundo. 

O risco e a tentação constantes da teologia é fechar-se sobre si mesma, constituir-se como teoria de teoria, criar um mundo à parte, deixando de ser intelecção da fé e serviço à fé. Daí a advertência do Papa Francisco para se “evitar uma teologia que se esgota na disputa acadêmica ou que olha para a humanidade [a partir] de um castelo de vidro”. A teologia, diz ele, deve estar “radicada e fundada na Revelação, na Tradição”, mas deve “também” acompanhar “os processos sociais e culturais” que experimentamos na “Igreja” e no “mundo”. Não podemos nos contentar com uma “teologia de escritório”. O lugar da teologia são as “fronteiras” da vida. E “os bons teólogos, como os bons pastores, têm o odor de povo e de rua e, com sua reflexão, derramam azeite e vinho sobre as feridas dos homens”. O teólogo que a Igreja e o mundo precisam não é “um teólogo de ‘museu’ que acumula dados e informações sobre a revelação sem, contudo, saber verdadeiramente o que fazer deles nem um ‘balconero’ da história”. Deve ser “uma pessoa verdadeiramente capaz de construir humanidade ao seu redor, de transmitir a divina verdade cristã em dimensão deveras humana e não um intelectual sem talento, um eticista sem bondade nem um burocrata do sagrado”[15].Não aconteça que, ocupados com suas pesquisas e disputas acadêmicas, os teólogos passem à margem do Senhor que está caído à beira do caminho. Importa fazer teologia como serviço intelectual à fé que se vive como participação e colaboração no desígnio salvífico-libertador de Deus para a humanidade e que tem nos pobres e marginalizados sua medida e seu critério escatológicos (Mt 25, 31-46).


[8] Cf. Ignacio Ellacuría, “La teología como momento ideológico de la praxis eclesial”, Escritos Teológicos I. San Salvador: UCA, 2000, 163-185; Idem., “Relación teoría y praxis en la teología de la liberación”, Escritos Teológicos I, San Salvador: UCA, 2000, 235-245; Francisco de Aquino Júnior, Teoria Teológica – Práxis Teologal: Sobre o método da Teologia da Libertação, São Paulo: Paulinas, 2012.

[9] Cf. Papa Francisco. Carta ao Cardeal de Buenos Aires por ocasião dos cem anos da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Argentina, A Santa Sé, Vaticano, 3 de Março de 2015, em http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2015/documents/papa-francesco_20150303_lettera-universita-cattolica-argentina.html [23.12.2019].

[10] Cf. Jon Sobrino, “Teología desde la realidad”, em: Susin, Luiz Carlos (org.). O Mar se abriu: Trinta anos de teologia na América Latina, São Paulo: Loyola, 2000, 153-170, 168.

[11] Cf. Ignacio Ellacuría, “Función liberadora de la filosofía”, Escritos Políticos I, San Salvador: UCA, 1993, 93-121.

[12] Cf. Francisco de Aquino Júnior, “Questões fundamentais de teologia da libertação”. Perspectiva Teológica 48 (2016) 245-268.

[13] Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação: Perspectivas, São Paulo: Loyola, 2000, 74.

[14] Ignacio Ellacuría, “Relación teoría y praxis en la teología de la liberación”, Escritos Teológicos I, San Salvador: UCA, 2000, 235-245, 241s.

[15] Papa Francisco. Carta ao Cardeal de Buenos Aires por ocasião dos cem anos da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Argentina, A Santa Sé, Vaticano, 3 de Março de 2015, em http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2015/documents/papa-francesco_20150303_lettera-universita-cattolica-argentina.html [23.12.2019].


Author

Francisco de Aquino Júnior, doutor em teologia pela Westfälischen Wilhelms-Universität Münster – Alemanha; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE – Brasil.

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