J. Tolendino Mendonça – A leitura infinita

1. O plural de que o texto é feito

Devemos, talvez, começar por sublinhar o óbvio: o texto é textum, é têxtil, textura, tecelagem, trama, tecido. Já a doutrina talmúdica admitia quarenta e nove graus diferentes de significado para cada passagem da Torá[3], descrevendo, dessa maneira, o texto como rede múltipla, e não como um mundo plano e unidimensional à espera de ser descortinado. Mais do que instituir uma estrutura fixa de significados, o texto ativa, assim, uma galáxia de significantes[4]. Por consequência, a interpretação não pode viver da aspiração ou da imposição de um sentido unívoco, à maneira de uma fechadura que só uma determinada chave é capaz de abrir. Interpretar é  «apreciar o plural de que o texto é feito»[5]. Somos chamados a aplicar ao contacto com o texto o dito de Jesus: «Aquele que quiser salvar… vai perder, mas o que perder… por causa de mim vai salvar» (Lc 9,24). Ler é perder o texto e o sentido idealizados, para aceder ao texto tal como ele se dá a ler, no dinamismo e na complexidade que lhe são inerentes. Sem isso não há leitura, nem interpretação. Perder para encontrar, portanto!

Poderosa na sua transparência é a imagem que nos é oferecida pela escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol para referir a prática hermenêutica da leitura: «compreender um texto – diz ela – é como compreender um cão… é aceitar que não se fala, que se não compreende, exceto pela companhia»[6].  O processo hermenêutico passa, assim, por um avizinhamento delicado, sem denunciar demasiadas expectativas, sem impor nada do que se sabe ou pretende saber. É um pacto sereno, uma descoberta mútua que a reciprocidade vai tecendo e aclarando. É um jogo jogado pela consciência do vivo, que se dá a ver na dobra, no intervalo, na interação afetiva, no instintivo silêncio, na dedução incalculável daquilo que cada um traz escondido. Estas premissas fundam uma experiência de justiça, já que tornam possível a equivalência entre ética e estética, não como discursos previamente instaurados, mas como opções que passam por um genuíno e profundo desejo de descoberta, de modo a definir valores que possam proporcionar uma «sociedade de mútua não-anulação»[7]. Interpretar assim o texto bíblico é fazer-lhe justiça.

Perder para encontrar! Perder a veleidade de olhar o texto como um ideatum a desvendar. Pelo contrário, se o leitor da Bíblia, em vez de perguntar «Qual é o significado?»,arrisca perguntar «Quem me chama?», no decurso da leitura, procede de outra maneira: deixa-se tocar afetivamente, aceita o texto como jogo onde o encontro inesperado do diverso emerge, predispõe-se a aceder a uma relação dinâmica, onde os fios do texto e os dele próprio se entretecem. 

É curioso que Jorge Luís Borges defendia que a hermenêutica era fundamentalmente uma prática de audição. Ele explicava que nos vinte anos em que foi professor de Literatura na Universidade de Buenos Aires,  recomendou permanentemente aos seus alunos que tivessem pouca bibliografia, que não naufragassem nas críticas, mas lessem diretamente as fontes: «talvez compreendam pouca coisa, mas sempre sentirão prazer e estarão ouvindo a voz de alguém»[8].

Numa linha semelhante, a ensaísta Susan Sontag sugere, para a leitura, a urgência de uma recuperação dos sentidos. Talvez devêssemos simplesmente aprender não só a escutar melhor, mas a ver melhor, a sentir melhor. O diagnóstico de que ela parte dá que pensar: «A nossa é uma cultura baseada sobre o excesso e a sobreprodução, o que impõe um permanente declínio da nossa experiência sensorial. Todas as condições da vida moderna – a sua abundância material, a sua massificação – conjuram para obstaculizar as nossas faculdades sensoriais. E é partindo das condições dos nossos sentidos, das nossas faculdades (e não daquelas de uma outra época) que se deve determinar a tarefa do crítico»[9]. Devemos dizer o mesmo da tarefa do leitor.

Esta reabilitação dos sentidos, que Sontag descreve como uma verdadeira «erótica da leitura», é um modo de fazer justiça ao texto, contra as intromissões espectrais das hermenêuticas dominantes que mais não fazem do que se sobrepor ao mundo do texto, evitando a todo o custo que o “encontro esponsal” entre texto e leitor se consuma. Há uma justiça que provém unicamente pelo contacto, pela mútua exposição. Interpretar, sobretudo se não parte deste sincero exercício de exposição, «é empobrecer, é esvaziar o mundo, para instaurar um mundo espectral de “significados”. É transformar o mundo neste mundo. (“Este mundo”. Como se não existissem outros.)»[10]

E compreender o texto constitui para o leitor não uma compreensão que lhe seja existencialmente alheia. Compreender é compreender-se diante do Texto. Lendo o livro que temos diante de nós, potenciamos o mergulho dentro de nós próprios, num processo de Auto decifração. Como defende Ricoeur: «Não se trata de impor ao texto a nossa capacidade finita de compreensão, mas de se expor ao texto e de receber dele um eu mais vasto»[11].


[3] Cf. R. Calasso, Quarantanove gradini (Milano: Adelphi, 1991) 126.

[4] Cf. R. Barthes, S/Z (Paris: Seuil, 1970), 11.

[5] Ibid.,11.

[6] M.G. LLANSOL, Ardente texto Joshua (Lisboa: Relógio d’Água, 1998), 74.

[7] M.E. SANTOS, Como uma pedra-pássaro que voa. Llansol e o improvável da leitura (Lisboa: Mariposa Azual, 2008), 83.

[8] J.L. BORGES, Borges Oral in Obras Completas. 1975-1988 (Lisboa: Teorema, 1999), 176.

[9] S. SONTAG, Against interpretation (New York: Vintage, 2001), 13-14.

[10] SONTAG, Against interpretation, 7.

[11] P. RICOEUR, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II (Paris: Seuil, 1986), 116-117.

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