3. As três grandes viragens hermenêuticas
A história da exegese bíblica contemporânea, no espaço cristão, faz-se contando três viragens hermenêuticas fundamentais: a hermenêutica centrada no autor, aquela centrada no texto e a que parte do papel do leitor. Estas deslocações de paradigma não implicam a supressão do modelo anterior, mas muitas vezes são concomitantes ou complementares, num processo atento à complexidade do ato de interpretar.
3.1. Modelos hermenêuticos centrados na questão do autor
Quando abordamos de um ponto de vista hermenêutico o texto Bíblico o que buscamos? Uma resposta possível é: alcançar a experiência do autor, a sua intenção que estaria como que objetivada pelo texto. De facto, à época da Constituição Conciliar Dei Verbum, o princípio hermenêutico da intentio auctoris aparecia como finalidade natural do programa exegético: «o intérprete da Sagrada Escritura […] deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar» (DV 12).
A sustentação teórica desta opção hermenêutica deriva das clássicas aportações de Schleiermacher e Dilthey que apresentavam o processo da interpretação como uma entrada na mente do autor. O leitor competente seria aquele que repetisse, perante um texto, a experiência (cognoscitiva, emocional…) do autor ao escrevê-lo, e se identificasse com ela[14]. A chave de interpretação aloja-se na intenção do autor que se pode esclarecer através da dialética que o texto encena entre o dizer explícito e o querer dizer implícito.
Por detrás da hermenêutica centrada no autor estão os ideais positivistas da objetividade e da precisão. Pretende-se que o autor, num ato consciente, objetivou o seu pensamento num texto, forjando um sentido que fica assim determinado, imutável e fixo. O leitor alcança com igual objetividade o sentido do texto se for capaz de o reconduzir à intenção do autor. É isso que a interpretação tenta recuperar. Assim, há uma expurga dos indícios de pluralidade, controlando, com uma desconfiança metódica, a subjetividade do leitor.
Esta hermenêutica centrada na questão do autor tem, contudo, os seus riscos. Alonso Schökel fala avisadamente de três [15]: 1) A neutralidade: à força de se restringir a pesquisa exegética a uma evidência anterior ao texto, descura-se a dinâmica revelatória do texto-em-si. O desejo de imparcialidade cerceia outros investimentos de sentido e leva facilmente a uma exegese asséptica que torna o texto esvaziado de qualquer pertinência. 2) O distanciamento – Este estudo científico corre o risco de fixar-se num plano estático, supra-histórico, que o afasta irremediavelmente da vida corrente e das suas instâncias práticas, como se fossem campos separados. 3) Minimalismo e maximalismo – O maior perigo é ainda, porém, o da acomodação a um domínio demasiado entregue à conjetura e à hipótese. As oscilações conduzem, não raro a uma certa arbitrariedade interpretativa.
A propósito do estatuto do autor também assomam dúvidas, pois a realidade do autor é muito mais complexa que a do esquema de uma intencionalidade de sentido. A psicologia moderna obriga-nos a uma visão mais complexa do criador literário. A narração é uma arte milenária. Há no texto uma porção significativa de sentido que é instintiva, que vem do desejo, da fantasia, do subconsciente do autor e que não atravessa necessariamente o ato reflexo da consciência. No ato de escrever ou desenrolar uma obra vão nascendo relações que não estavam necessariamente pensadas. Como diz Michel de Certeau, «a escrita produz-se sempre no território e na língua do outro»[16]. O poder de significação do texto é uma surpresa para o próprio autor.
3.2. A hermenêutica centrada na imanência do texto
Uma outra resposta à demanda hermenêutica é a concentração no texto. Se o paradigma anterior é o húmus das metodologias diacrónicas (apostadas em iluminar as etapas anteriores ao texto atual, a sua genealogia), predominam agora os métodos de abordagem sincrónica, que tomam o texto como totalidade, na sua dupla componente discursiva e narrativa. O texto é perspetivado como base significativa fundamental. Nasce de um autor, claro, mas é também uma realidade autónoma, com uma consistência própria, à maneira de um sistema orgânico de formas significativas (verbais e não só). Pode-se dizer que tudo na Texto é semântico, significativo. Não só as parcelas (a micro-estrutura), pois o Texto não é apenas um elenco de frases sucessivas, mas também a unidade total (a macro-estrutura). O sentido constrói-se como uma rede que religa a globalidade dos elementos textuais. Além disso, o Texto relata uma experiência humana na sua complexidade, criando um universo próprio. No qual somos convidados a entrar.
A hermenêutica do autor interessava-se por referentes externos. Esta do Texto atém-se ao chamado princípio de imanência, já que considera que «todo o recurso a factos extra-linguísticos deve ser excluído»[17]. O famoso Grupo D’Entrevernesescreve, partindo do princípio de imanência, esta página programática que elucida bem o objetivo em causa:
São as condições internas da significação que nós buscamos. Por isso a análise deve ser imanente. Isto quer dizer que a problemática definida pelo trabalho semiótico conduz ao funcionamento textual da significação e não à relação que o texto pode estabelecer com um referente externo. O sentido será então considerado como um efeito, como um resultado produzido por um jogo de relações entre os elementos significantes. É no interior do texto que nós construiremos o “como” do sentido[18].
Este modelo hermenêutico tem a vantagem de ultrapassar uma conceção estreita e instrumental do texto e de afrontar seriamente a interrogação sobre o modo como pela criação literária se expressa uma determinada visão religiosa, evitando hipotecar o texto a uma lógica de fragmentação. Como explica Jean Louis Ska, «o sentido profundo de um texto não está fora ou atrás ou acima dele»[19]: emerge nele próprio.
O leitor não é apenas produtor ou consumidor, mas é produto do próprio texto. As técnicas presentes a cada unidade textual são ao mesmo tempo uma forma de pedir a colaboração do leitor para a construção do texto e uma maneira de construí-lo. O leitor é construído à medida que avança no texto.
3.3. A hermenêutica centrada na colaboração do leitor
Há um certo consenso quanto a uma mutação em curso no que respeita à hermenêutica bíblica. Se na estação anterior se privilegiava a análise do texto como objeto dotado de características estruturais próprias, suscetíveis de uma descrição mais ou menos rigorosa, progressivamente a discussão está a orientar-se para a pragmática da leitura. Deixou de estar no centro a enunciação histórica do texto ou as regras que servem a produção. Como declara Umberto Eco: «hoje o fantasma do leitor inseriu-se no centro»[20]. A receção passou a mobilizar os enfoques críticos. E também para a exegese bíblica soou a hora do leitor[21].
O leitor é requerido, suposto e esperado pelo próprio texto. Este é «uma máquina preguiçosa que pede ao leitor que colabore para preencher uma série de espaços vazios»[22].
A “preguiça” do texto, isto é, a sua incompletude, permite tornar o ato da leitura numa espécie de pacto: compreender o texto constitui para o leitor não uma compreensão que lhe seja existencialmente alheia. Lendo o livro que temos diante de nós, potenciamos o mergulho dentro de nós próprios. Como garante Anne-Marie Pelletier: «O ganho de uma leitura da Bíblia passa assim a ser proporcional àquilo que o leitor consente expor de si próprio, aos riscos que ele aceita correr tornando-se vulnerável no confronto com as palavras com as quais ele se vai cruzar. Princípio simples, de facto, que não diz respeito unicamente à leitura da Bíblia, mas que se verifica nela seguramente mais do que em qualquer outro lugar»[23].
Em síntese: o estatuto do texto sagrado confirma-o como geneticamente plural. Ele junta o elemento histórico com a intencionalidade ampla e descontínua que é necessário perscrutar. O sujeito desta perscrutação é o leitor, elemento requerido, suposto e esperado pelo próprio texto. O ato da leitura é um verdadeiro pacto selado entre ambos. Por um lado, o leitor (não um qualquer, mas aquele dotado de competência) ativa a mecânica textual, preenchendo os espaços vazios e indeterminados que vão depois permitir compreender o texto. Há uma história do texto que o leitor é chamado a explorar com o auxílio de instrumentos diversificados e complementares. Ele não pode ignorar a proveniência, a cultura, a linguagem, a composição ou a finalidade do texto. Sem esse levantamento dificilmente se pode chegar à compreensão. Mas, por outro lado, compreender é compreender-se. O texto não é apenas uma janela: é um inesperado e fundamental espelho. E o poder multiplicador do espelho avizinha-nos do infinito.
[14] Cf. R. PALMER, Hermeneutics: interpretation theory in Schleiermacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer (Evanston Northwestern: University Press, 1969).
[15] Cf. L. ALONSO SCHÖKEL – J.-M. BRAVO, Apuntes de Hermenêutica (Madrid: Trotta, 1997), 31-32.
[16] M. CERTEAU, L’écriture de l’histoire (Paris : Gallimard, 1975), 381.
[17] A. GREIMAS – J. COURTÈS, Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du langage (Paris : Hachette, 1979), 181.
[18] GROUPE D’ENTREVERNES, Analyse sémiotique des textes (Lyon :Presses Universitaires de Lyon, 1985), 8.
[19] J.-L. SKA, Gn 18,1-15 alla prova dell’esegesi classica e dell’esegesi narrativa in C. MARCHESELLI-CASALE Oltre il racconto(Napoli :D’Auria, 1994), 12.
[20] U. ECO, I limiti dell’interpretazione (Milano: Bompiani, 1990), 17.
[21] Cf. D. MARGUERAT (ed.), La Bible en récits. L’exégèse biblique à l’heure du lecteur (Genève : Labor et Fides, 2003), 13.
[22] U. ECO, Sei passeggiate nei boschi narrativi (Milano: Bompiani, 1994), 3.
[23] A.-M. PELLETIER, Pour que la Bible reste un livre dangereux in Etudes 397(2002), 345.