M. Cappelli // E. de Almeida – Dietrich Bonhoeffer

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por Marcio Cappelli e Edson Fernando de Almeida


Filho de uma família burguesa de médicos e advogados, Dietrich Bonhoeffer sentiu-se atraídopela formação teológica menos por razões eclesiais que culturais. Em 1927, escreveu seu primeiro trabalho teológico importante, Sanctorum Communio, como conclusão do seu doutorado em teologia, tendo sido aluno, entre outros, de von Harnack. No período de 1929 a 1930 habilitou-se para o ensino de Teologia com o trabalho “Ato e Ser”: filosofia transcendental e ontologia no seio da sistemática. Mais tarde, como reitor e professor do Seminário da Igreja Confessante, ala da igreja evangélica que não aderiu à política nacional socialista na Alemanha, projetou-se sobre a vida pastoral e ecumênica. Marcado como uma espécie de inimigo do nazismo, entre 1937 e 1938, produziu duas obras importantes que explicitam, no plano teológico pastoral, seu tornar-se cristão em tempos obscuros: Discipulado (Nachfolge) Vida em Comunhão (GemainsamesLeben).[1]

A partir de 1939, após recusar a oportunidade de permanecer nos EUA, oferecida quando de um curso que foi ministrar, lançou-se, em definitivo,na resistência ao nazismo. Nesse ínterim começou a escrever o texto que mais tarde seria compilado e publicado sob a epígrafe Ética (Ethik). Nesta obra, vê-se com clareza o cristão que vai se fazendo humano, apenas humano. Um homem que, despido de qualquer pretensão religiosa, qualquer necessidade de afirmação de uma metafisica cristã abstrata nos acontecimentos do seu tempo, quer ser um humano, a serviço de Cristo, num mundo tornado adulto. Envolvido diretamente na atividade política na luta contra o nazismo, foi preso em abril de 1943. Na prisão, a troca de cartas com parentes e amigos fez nascer um estrato considerável de sua teologia, com forte acento testemunhal. Estas cartas da prisão foram publicadas após a sua morte, com o título de Resistência e submissão (Widerstand und Ergebung).[2]

Nessas correspondências estão presentes belíssimos poemas, orações e subjaz o germe da possibilidade de um Cristianismo arreligioso (única maneira, de acordo com Bonhoeffer, de viver segundo o evangelho no mundo emancipado), além da ideia do sofrimento divino que mais tarde influenciaria o pensamento de Jürgen Moltmann. A teologia da cruz desborda na obra deste místico protestante, para quem, viver com Deus é viver como se Ele não existisse.  Sua mística leva aos estertores a noção de uma fé arreligiosa, que não faz concessões ao instinto religioso humano na constante procura de um deus ex machina, tapa buracos, que vive a preencher os vazios do conhecimento.

Nos textos bonhoefferianos a seguir, vê-se no lusco fusco da fé, que o Deus da revelação se manifesta por sua impotência na cruz e, por tal impotência, infunde coragem em um ser humano também impotente. Se a religião constata a impotência humana e afirma a onipotência divina como saída, a teologia da cruz afirma a impotência de Deus no mundo e aponta para a forma da Sua presença em todos os tempos e lugares: a cruz de Cristo nas dores do mundo.

Deus sofredor

O Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Mc 15.34)! O Deus que faz com que vivamos no mundo sem a hipótese de trabalho Deus é o Deus perante o qual nos encontramos continuamente. Perante e com Deus vivemos sem Deus. Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele está conosco e nos ajuda. Em Mt 8.17 está muito claro que Cristo não ajuda em virtude de sua onipotência, mas da sua fraqueza, do seu sofrimento! Nesse ponto reside a diferença decisiva em relação a todas as religiões. A religiosidade do ser humano o remete, na sua necessidade ou aflição, ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus exmachina. A bíblia remete o ser humano a impotência de Deus, somente o Deus sofredor pode ajudar.[3]

Cristianismo arreligioso

O que me ocupa incessantemente é a questão: que é o cristianismo ou ainda quem é de fato Cristo para nós hoje. Foi-se o tempo em se podia dizer para as pessoas por meio de palavras – sejam teológicas ou piedosas; passou igualmente o tempo da interioridade e da consciência moral, ou seja, o tempo da religião de maneira geral. Rumamos para uma época totalmente arreligiosa; as pessoas sendo como são, simplesmente não conseguem mais ser religiosas. Também aquelas que sinceramente se dizem religiosas de modo algum praticam o que dizem; portanto é provável que com o termo religioso estejam se referindo a algo bem diferente.

(…) As perguntas a serem respondidas seriam: o que significam uma igreja, uma comunidade, uma prédica, uma liturgia, uma vida cristã num mundo arreligioso? Como podemos falar de Deus – sem religião, sem os pressupostos temporalmente restritos da metafísica, da interioridade? Como podemos falar (ou talvez nem mesmo se possa mais falar disso como até agora) de maneira mundana de Deus? Como podemos ser cristãos de maneira arreligiosa e “mundana”?[4]

Cristãos e pagãos

Pessoas buscam a Deus na sua necessidade,
Imploram auxílio, pedem felicidade e pão.
Libertação de doença, culpa e morte.
Assim fazem todas, todas, cristãs e pagãs.

Pessoas buscam a Deus na Sua necessidade,
Acham-no pobre, insultado, sem abrigo e sem pão.
Vêem-no envolto em pecado, fraqueza e morte.
Cristãos ficam com Deus na Sua paixão.

Deus busca todas as pessoas na sua necessidade,
Satisfaz o corpo e a alma com o Seu pão,
Sofre por cristãos e pagãos a morte na cruz
E a ambos concede perdão.[5]

Quem sou eu?

Quem sou eu? Seguidamente me dizem
que deixo a minha cela
sereno, alegre e firme
qual dono que sai de seu castelo.
Quem sou eu? Seguidamente me dizem
Que falo com os que me guardam
Livre, amável e com clareza
Como se fosse eu a mandar.
Quem sou eu? Também me dizem
que suporto os dias do infortúnio
impassível sorridente e altivo
como alguém acostumado a vencer.
Sou mesmo o que os outros dizem a meu respeito?
Ou sou apenas o que sei a respeito de mim mesmo?
Inquieto, saudoso, doente, como um pássaro na gaiola,
Respirando com dificuldade como se me apertassem a garganta,
Faminto de cores, de flores, do canto dos pássaros,
Sedento de palavras boas, de proximidade humana,
Tremendo de ira por causa da arbitrariedade e ofensa mesquinha,
Irrequieto à espera de grandes coisas,
em angústia impotente pela sorte de amigos distantes
cansado e vazio até para orar, para pensar, para criar,
desanimado e pronto para me despedir de tudo?
Quem sou eu? Este ou aquele?
Sou hoje este e amanhã um outro?
Sou ambos ao mesmo tempo? Diante das pessoas um hipócrita?
E diante de mim um covarde queixoso e desprezível?
Ou aquilo que ainda há em mim será como um exército derrotado,
Que foge desornado à vista da vitória já obtida?
Quem sou eu? O solitário perguntar zomba de mim.
Quem quer que eu seja, ó Deus, tu me conheces, Sou teu.[6]


[1] Marcio, Cappelli. Dietrich Bonhoeffer, in Maria Clara Bingemer; Marcus Reis Pinheiro (orgs) Narrativas Místicas: antologia de textos místicos da história do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2016.

[2] Ibidem.

[3] Dietrich Bonhoeffer. Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal, 2003, pp. 487-489.

[4] Ibidem, pp. 369-371.

[5] Ibidem, pp. 469-470.

[6] Ibidem, pp. 468-469


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