Luiz Carlos Susin – « O Povo Cordeiro de Deus »

2. O Povo Crucificado

“Cordeiro de Deus” pode também ser titulo revelador de um povo? Que sentido e que eficácia tem o reconhecimento de que há um povo que configura hoje o Cordeiro de Deus? Para responder adequadamente à pergunta é oportuno revisitar textos de Ignacio Ellacuría e de Jon Sobrino a respeito do “Povo Crucificado”. 

Em 1972 Jürgen Moltmann tinha completado dialeticamente sua Teologia da Esperança com o surpreendente livro – para a época – Deus Crucificado. Sua questão era o significado da cruz e do sofrimento de Cristo não somente para a humanidade mas para Deus mesmo. Era também uma maneira de se debruçar sobre o sofrimento de aniquilação de Auschwitz, portanto de milhões – o que isso importa para Deus? Seu livro foi recebido com apreciações críticas por K.Rahner, J.B.Metz, H.Küng, D. Sölle, entre outros. Ellacuria ampliou de forma novamente dialética, o acontecimento paradoxal de aniquilação e de salvação da crucificação não em direção a Deus mas em direção ao povo.  Em 1978 publicou o denso artigo O povo crucificado: Ensaio de soteriologia histórica.[2] “Povo crucificado” se constituiu em categoria analítica resistente, assumindo inclusive as críticas que lhe foram dirigidas. Uma das mais relevantes foi a crítica de Moltmann em seu diálogo fraternal com a teologia latino-americana. Em 2000 ele ainda observava: 

Foi certo redescobrir a dignidade e a subjetividade do povo. Julgo, porém, que não é correto falar do “povo crucificado”, que “tira o pecado do mundo” e assim “redime” o mundo. Desta maneira, o sofrimento do povo é apenas glorificado e eternizado religiosamente. O povo não quer salvar o mundo por seu sofrimento, mas finalmente ser redimido de seu sofrimento e levar uma vida humanamente digna.[3]

Se na soteriologia do artigo de Ellacuría não houvesse uma identificação histórica entre o povo e Cristo, Moltmann teria absoluta razão. A tese de Ellacuría, no entanto, é clara: a unidade entre a história de crucificação de Jesus e as histórias de crucificação dos “pequeninos” ao longo dos tempos redunda em salvação do mundo porque é Deus mesmo que está nessas histórias de crucificações e persevera nelas. Elas corrigem a desastrosa cristologia da satisfação vicária, de “pecado-ofensa-pena-expiação-perdão” porque Deus está em quem pena e expia e não em quem exige e impõe pena e expiação. O pecador, ou seja, o que oprime e mata, é quem impõe ao povo e a Deus a pena e a morte. É óbvio que nem a Deus e nem ao povo que sofre agradam sofrimento e morte. Mas a realidade cruel que domina o mundo é histórica, se estende na história e se concretiza na economia, na política, na cultura. Encarregar-se dessa realidade com fidelidade e perseverança é possível se Deus está com quem a carrega, inclusive carregando e se encarregando da cruz todos os dias. Esse é o sentido do convite de Jesus a segui-lo tomando a cruz. É também o sentido da identificação dele com os “pequeninos”, que experimentam a fragilidade de ter que carregar o que o mundo impõe, a cruz. Por um lado, o povo crucificado historiza e estende o acontecimento salvífico de Cristo, sacramentum crucis. A cruz não voa na metafísica e num drama intratrinitário mistificador. Por outro lado, a forma de Cristo morrer numa cruz ilumina e dá alcance salvífico às crucificações do povo, pois de outro modo o sofrimento e a morte se perderiam, de fato, no abandono e no absurdo.[4]

Em consequência, Jon Sobrino desenvolveu o theologúmeno que também à primeira vista pode causar estranheza: extra pauperes nulla salus – “Fora dos pobres não há salvação”.[5] É paráfrase do axioma “Fora da Igreja não há salvação”, que não tinha na origem um sentido jurídico mas de pertença comunitária-eclesial. Na cristandade posterior, porém, tornou-se jurídico e causou sofrimentos e injustiça. Schillebeeckx ensaiou a paráfrase Extra mundum nulla salus – “Fora do mundo não há salvação”, para considerar a realidade histórica deste mundo como necessário lugar da salvação – e também lugar de decisão e condenação, extra mundum nulla damnatio. No theologumeno de Sobrino, mais do que um deslocamento do lugar da salvação, se trata de um aprofundamento do lugar, da forma, dos critérios, dos desígnios de salvação, levando em conta, por um lado, as fontes do Novo Testamento, e, por outro lado, a realidade nua, sem máscaras, onde há uma imensa maioria da humanidade em condições de pobreza e opressão e o acúmulo cada vez mais absurdo não só de riquezas mas de possibilidades de vida decente num círculo proporcionalmente cada vez menor. Não é o caso de estendermo-nos aqui enumerando os fenômenos de iniquidade que perduram no presente. Obviamente não é pela quantidade de pobres e de sofrimentos, ou por alguma condição privilegiada de santidade dos pobres, que são sacramento de salvação. Mas porque lá onde há kénosis neste mundo, lá se encarna e se identifica o Filho de Deus até a morte e morte de cruz. Tanto Ellacuría como Sobrino insistem em que não se pode separar, ainda que seja útil distinguir teoricamente, a condição transcendente e a condição histórica da salvação. O próprio evento de Cristo aboliu a separação e venceu a tentação de esquizofrenia entre história e transcendência.

No entanto a esperança, a profecia, a possibilidade de “outro mundo” não pode provir desse sistema triunfante, iníquo e louco, a que normalmente se dá o nome de capitalismo, o atual “mundo” de Pilatos. Hoje em fase tão agigantada a ponto de se tornar disfuncional, desarranjando sua própria lógica, como uma casa cada vez mais dividida prestes a cair sobre si mesma.[6] Ora, há elementos na história que, para que haja salvação, é necessário aniquilar, porque são fontes de males contínuos e crescentes. Os recursos de salvação são encontrados em outro lugar, no “reverso” da história triunfante, tomando as palavras de Gustavo Gutierrez: A força histórica dos pobres não é da mesma qualidade e lógica da força dos que vencem na lógica do mundo. Dizendo de forma cristã, a força dos que estão fora e abaixo desse sistema está relacionada à aliança com o Crucificado no desígnio salvador de Deus. Por isso, em sua fraqueza e inocência em confronto com quem os esmaga, são portadores históricos da salvação do Crucificado, oferecendo essa possibilidade para além mesmo da consciência que possam ter dela. Participam da carne do Cordeiro inocente que tira o pecado do mundo.


Notas

[2] Cf. ELLACURÍA Ignacio, Escritos teológicos II. San Salvador: UCA editores, 2000. p137-170. O artigo foi reproduzido diversas vezes. 

[3] MOLTMANN Jürgen, Teologia Latino-americana. In: SUSIN Luiz Carlos, O mar se abriu. São Paulo: Loyola, 2000. p230. 

[4] Cf. ELLACURÍA Ignacio, Escritos teológicos II, p155. 

[5] Cf. SOBRINO Jon, fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos. Madrid: Trotta,2007. Especialmente p59-106. Ele confessa que foi inspirado por seus confrades Javier Vitória e González Faus.

[6] Cf. DOWBOR Ladislau, A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Autonomia Literária, 2017; 3ª edição.

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