« Do Concilio ao Código de Direito Canônico de 1983. Precisamos uma nova reforma? »
de: Jesus Hortal
Rio de Janeiro (BR)
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1. A necessidade da reforma do Código e o seu anúncio
Após quarenta anos de vigência do Código de Direito Canônico, elaborado durante o pontificado de São Pio X, mas promulgado por Bento XV, em 1917, sentia-se a necessidade de uma reforma profunda, que o adequasse às novas exigências dos tempos. Duas guerras mundiais e entre elas uma profunda crise econômica, o auge e o declínio dos sistemas totalitários, a evolução acelerada da ciência e da tecnologia, o aprofundamento dos estudos psicológicos e sociológicos, o imparável processo de descolonização, a globalização crescente, embora temperada pelo surgimento do multiculturalismo, a consciência mais aguda sobre a dignidade da pessoa humana e as injustiças sociais, a exaltação da democracia como sistema universal de governo: todos esses fatores contribuíram a criar, na Igreja católica um anelo de reforma de um Código que, em termos de História do Direito, não poderia ser considerado velho. Quando fora promulgado, os canonistas pensavam que duraria, pelo menos, duzentos anos e eis que após quarenta, muitos o consideravam uma camisa de força intolerável para a Igreja.
Aos 25 de janeiro de 1959, simultaneamente com o anúncio do Concílio Vaticano II, o Papa João XXIII comunicou aos Cardeais seu propósito de promover também a reforma do Código, que seria como que o coroamento da obra do Concílio[1]. O Papa Roncalli não era um jurista e tendia a simplificar as coisas. Em conversas privadas chegou a comentar que, no ano de 1960, realizaria o Sínodo Romano; o Concílio levaria um outro ano e, após essas duas assembleias, a reforma do Código seria bem rápida. Confiava em dar conta do recado antes de que o seu pontificado concluísse. Por isso, iniciado o Concílio em dezembro de 1962, mas sem ainda ter sido aprovado nenhum documento conciliar, não demorou em tentar logo aquela reforma. Em 28 de março 1963 nomeou uma comissão preparatória do novo Código[2]. João XXIII, porém, apenas conseguiu realizar o seu primeiro projeto, o Sínodo Romano, do qual já quase ninguém se lembra, pois, elaborado de modo absolutamente autoritário, não teve praticamente nenhuma acolhida e logo se encontrou superado pelo Concílio.
Os trabalhos conciliares se prolongaram durante quatro anos e Roncalli não pôde promulgar nenhum documento conciliar. Da nova codificação, não chegou nem sequer a ver um esboço.
[1] “Esse [as duas iniciativas já propostas, Sínodo Romano e Concílio ecumênico] condurranno felicemente all’auspicato e atteso aggiornamento del Codice di Diritto Canonico, che dovrebbe accompagnare e coronare questi due saggi di pratica applicazione dei provvedimenti di ecclesiastica disciplina, che lo Spirito del Signore Ci verrà suggerendo lungo la via” (Alocução solene aos Cardeais reunidos na Basílica de São Paulo fora dos Muros, no dia 25 de janeiro de 1959: AAS 51 (1959) 68-69).
[2] AAS 55 (1963) 363. Esta primeira comissão, dada a incerteza dos rumos a serem seguidos pelo Concílio, tomou a sensata resolução de não se reunir enquanto os trabalhos conciliares não estivessem prestes a se concluir. Por isso, ficou como que adormecida, durante mais de três anos.
2. O inicio dos trabajos de reforma do Código
No ano de 1965, prestes a encerrar-se o Vaticano II, Paulo VI reorganizou a comissão preparatória, ampliando-a notavelmente. No discurso que pronunciou, aos 30 de novembro, para a inauguração dos trabalhos, o Papa Montini traçou as linhas fundamentais da reforma[3]. Começou por justificar a sua necessidade, indicando a dupla natureza, visível e espiritual da Igreja, que o Concílio sublinhara tão claramente na Lumen Gentium. Contra as correntes democratizantes, que clamavam por uma reforma radical, insistiu no caráter hierárquico – “sociedade desigual” – do corpo eclesial. E marcou a meta fundamental dos trabalhos da comissão: “O Direito canônico deve ser reformado com prudência, ou seja, deve ser acomodado ao modo de pensar próprio do Concílio Ecumênico Vaticano II, pelo qual confere-se um papel primordial ao cuidado pastoral e às novas necessidades do Povo de Deus”[4].
O Papa Montini, no mesmo discurso, também se mostrou otimista quanto à duração dos trabalhos da Comissão. Pensava numa elaboração bem mais rápida do que a do Código anterior, pois, dizia, contava-se com o guia daquele Corpo legislativo e o Concílio fornecia as linhas mestras da nova obra. Transcorreram, porém, nada menos do que vinte e quatro anos, desde o primeiro anúncio até a promulgação do novo Código por João Paulo II. Agora, após algo mais de trinta anos de vigência, podemos perguntar-nos se ele preencheu as expectativas que despertou
3. Encontra-se o Concílio Vaticano II refletido, de fato, no Código de Direito Canônico, especialmente na sua estrutura?
O Concílio não produziu realmente nenhum documento específico sobre a reforma do Direito Canônico. Fez, sim, numerosas alusões à necessidade de reformar a legislação em vigor. Por isso, também não determinou nada sobre a ordem sistemática do novo Código. A questão não era banal. A sistematização das leis eclesiásticas reflete a concepção teológica que inspirou o legislador. O Código de 1917 inspirou-se basicamente na codificação napoleônica, fundamento de todas as codificações europeias modernas. Por isso, adotou, como esquema básico, a estrutura tripartita – pessoas, coisas, ações -proveniente do Direito romano clássico e que foi adotada também pelo Código Civl de Napoleão. Seguindo também o exemplo das codificações civis, antepôs a esses três livros (numerados respectivamente como segundo, terceiro e quarto) um primeiro, contendo as normas gerais. Além disso, usou a denominação “processos” em lugar de “ações”. Finalmente, por acolher em seu seio não só o Direito privado, mas também o público, concluiu com um livro quinto sobre “os delitos e as penas”. Tratava-se, pois, fundamentalmente, de um esquema secular, que não refletia a natureza específica da Igreja. Havia aí um reflexo da eclesiologia da Contrarreforma, com a consideração da Igreja como sociedade perfeita, quase que competindo com os Estados.
O Código de 1983, pelo contrário, foi elaborado com a vontade expressa de refletir a natureza da Igreja, segundo a doutrina tão belamente exposta pelo Vaticano II. João Paulo II, de modo bastante otimista, declara isso expressamente, na Constituição Apostólica Sacrae disciplinae Leges: “O instrumento que é o Código combina perfeitamente com a natureza da Igreja, tal como é proposta pelo magistério do Concílio Vaticano II, no seu conjunto e de modo especial na sua eclesiologia. Mais ainda, este novo Código pode, de certo modo, ser considerado como o grande esforço de transferir para a linguagem canonística a própria eclesiologia conciliar. Se é impossível que a imagem da Igreja descrita pela doutrina conciliar se traduza perfeitamente na linguagem canonística, o Código, não obstante, deve sempre referir-se a essa imagem como modelo primordial, cujos traços, enquanto possível, ele deve em si, por sua natureza, exprimir”[5].
[5] Giovanni Paolo II, Sacrae disciplinae leges.
Procurando, pois, realizar esse ideal, o Código foi estruturado em torno da concepção da Igreja como Povo de Deus, que exerce o tríplice múnus de ensinar, santificar e reger, confiado a ela pelo próprio Cristo Senhor. Por isso, o livro segundo, cujo título é O Povo de Deus, é o livro básico do atual Código de Direito Canônico. Ele é precedido por um livro – o primeiro – sobre as Normas Gerais; e é seguido por outros três, sobre os múnus da Igreja: Livro III, sobre o Múnus de Ensinar; livro IV, sobre o Múnus de Santificar; livro V, sobre os Bens Temporais da Igreja (princípios de administração, que, embora formem parte do múnus de reger, constituem apenas uma parte pequena dele). Se o livro II poderia ser chamado “O ser da Igreja”, os livros III, IV e V constituiriam o que podemos qualificar como “O agir da Igreja”.
Esses cinco primeiros livros constituem o que podemos chamar de Direito substantivo, ou seja, as normas que regulamentam a própria convivência social na Igreja. Mas o Código de 1983 compreende também o Direito adjetivo, ou seja, as disposições que garantem a aplicação do substantivo. Por isso, contém ainda outros dois livros: o VI, sobre as Sanções na Igreja, e o VII, sobre os Processos.
Essa estrutura, contudo, apresenta diversas falhas. Em primeiro lugar, o fato de não ter nenhum livro com o título de o Múnus de Reger. Como víamos, o livro V apenas compreende uma parte dessa função eclesial, ou seja, a parte relativa à administração dos bens temporais. Essa limitação se deve ao fato de que todo o tratado sobre a hierarquia eclesiástica foi antecipado na segunda parte do livro II (“Da estrutura hierárquica da Igreja”), numa sistematização, pelo menos, discutível. Por que não separar essa parte e colocá-la como livro V, englobando nele também o atual sobre os bens temporais?
Em segundo lugar, também parece questionável a colocação da terceira parte do livro II, que trata da Vida Consagrada. Não parece ser essa uma estrutura básica do Povo de Deus, onde, por instituição divina, só se deveria fazer a distinção entre clérigos e leigos[6]. A nosso modo de ver, a Vida Consagrada não é uma estrutura constitutiva, mas antes um meio especial de realizar a comum vocação à santidade. Por isso, deveria ser focalizada dentro do livro IV, sobre o Múnus de Santificar. Ficaria assim mais claro que os religiosos e os membros dos outros modos de vida consagrada não são um gênero intermediário entre clérigos e leigos, mas um modo específico de tender para a mesma perfeição da santidade a que são chamados todos os fiéis.
[6] Cf. cân. 207 § 1.
Chama-me também a atenção que o nosso corpo legal não tenha dedicado nenhum tratamento específico à família. Há algumas alusões soltas, mas nenhum título e nem sequer capítulo que sistematize as normas canônicas sobre essa célula fundamental tanto da sociedade civil, quanto da eclesial.
Percebe-se, por outro lado, no livro VII, a falta de regulamentação sobre os recursos, não só administrativos, mas também contenciosos contra os abusos do poder eclesiástico. Nas respostas dos episcopados nacionais sobre esta questão, prevaleceu uma mentalidade absolutista, baseada no caráter divino da hierarquia eclesiástica, que impediu o estabelecimento de procedimentos judiciários para a tutela dos direitos das pessoas na Igreja contra os abusos da autoridade.
4. Outros temas que poderiam ser reformulados
A) Retomar o projeto de Lei Fundamental da Igreja?
Tanto o Código de 1917 quanto o de 1983 referem-se exclusivamente à Igreja latina, ou seja, às comunidades cristãs que surgiram e se desenvolveram no âmbito do antigo Império Romano do Ocidente, onde a língua falada era o latim, e às que delas se derivaram posteriormente, pela emigração ou pelo trabalho missionário em todos os continentes, especialmente nas Américas. Dessa Igreja latina devem-se distinguir as Igrejas orientais católicas, que se originaram nos territórios do antigo Império Romano do Oriente e, por influxo delas, além de suas fronteiras, tanto na Ásia quanto na África. Através das migrações, mais tarde surgiram comunidades católicas orientais em outros continentes, inclusive na Europa ocidental. As Igrejas orientais católicas regem-se por uma legislação própria, codificada parcialmente no tempo de Pio XII, mas que também foi modificada após o Vaticano II, dando lugar ao atual Código dos Cânones das Igrejas Orientais, promulgado no dia 18 de outubro de 1990[7]. Temos, pois, dois Códigos: latino e oriental. Muitos, porém, se perguntavam, no momento da nova codificação por que não existia uma legislação básica, comum a todas as Igrejas católicas, tanto latinas quanto orientais.
[7] AAS 82 (1990) 1033-1364.
Já durante o Concílio, no dia 8 de dezembro de 1963, o bispo maronita, Khoreiche, do Líbano, solicitou que fosse elaborada uma «lei fundamental», válida para toda a Igreja, tanto oriental como latina. Paulo VI, no seu discurso à Comissão de reforma, propôs que se examinasse a possibilidade de elaboração de um projeto de “Lei Fundamental da Igreja”, anterior e superior aos diversos Códigos e que poderia servir de elo de união entre latinos e orientais. Teria que compreender, portanto, o Direito constitutivo da Igreja católica, como um todo[8]. Tratar-se-ia de algo semelhante, na sua forma externa, às Constituições dos Estados modernos. Qualquer legislação eclesiástica não só deveria respeitar essa “Lei Fundamental”, mas também inspirar-se positivamente nela.
[8] “Peculiaris vero hic exsistit quaestio eaque gravis, eo quod duplex est Codex Iuris Canonici, pro Ecclesia Latina et Orientali, videlicet num conveniat communem et fundamentalem condi Codicem, ius constitutivum Ecclesiae continentem” (Discurso à Comissão de refrma, 20 de novembro de 1965, em AAS 57 [1965] 988).
A discussão em torno dessa sugestão foi bem viva. Muitos viram nela uma tentativa de juridicizar totalmente a Igreja, traduzindo em cânones uma concepção teológica particular. Após alguns esboços iniciais, um projeto completo de Carta Magna foi submetido à apreciação do episcopado mundial, em 1971. Ele despertou fortes críticas, em relação à própria possibilidade de uma “Lei Fundamental”, à sua falta de espírito ecumênico, ao método de elaboração seguido, à confusão entre elementos teológicos e canônicos, etc. A Lei Fundamental da Igreja – argumentava-se – é a caridade. Submetido a sucessivas revisões, o projeto acabou por não ser promulgado. Mas uma boa parte de seus cânones foi incorporada ao novo Código, sobretudo nas disposições de caráter geral, que se encontram no início de cada livro, parte ou título. Agora, após mais de cinquenta anos após o Concílio, não poderíamos ressuscitar a idéia básica de formular alguns princípios comuns a latinos e orientais? Não pensemos numa “Constituição”, pois esse nome desperta, de fato, repulsa, mas, ao menos, em princípios gerais da legislação canônica vigentes para toda a Igreja.
B) A pessoa e os seus direitos
Uma das coisas que mais me chocaram, na primeira leitura do Código de 1983 foi a adequação entre o conceito de pessoa e o de fiel cristão. O cânon 96 é bem claro: “Pelo batismo o homem é incorporado à Igreja de Cristo e nela constituído pessoa, com os deveres e os direitos próprios dos cristãos”. Em boa lógica, deveria deduzir-se daí que os não batizados não são pessoas. É claro que ninguém defende tal absurdo. O Concílio Vaticano II, sobretudo na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, se posicionou bem claramente em favor de uma Igreja defensora dos direitos humanos. Nesse conceito esdrúxulo do nosso Código, há uma confusão que deveria ser evitada: a distinção, que aparece em todas as legislações civis entre pessoa e cidadão. Na legislação canônica deveria, portanto, ser sublinhada a distinção entre pessoa humana e fiel cristão (católico). A partir daí, poderia ser introduzida uma normativa mais clara e corajosa, da parte de todas as estruturas eclesiais, da dignidade e dos direitos da pessoa humana.
Ainda mais, poderia ser lembrado o Sínodo dos Bispos de 1971, o único que pareceu avançar o sentido do exercício da colegialidade. O tema fundamental tratado na assembleia sinodal foi “A Justiça no mundo”. A esse repeito, o Sínodo, seguindo a trilha do Vaticano II, não apenas falou da prática da justiça na sociedade em geral, mas também no seio da própria Igreja. A Igreja – sublinharam os Bispos – deve dar um testemunho próprio da justiça. Por isso, na vida eclesial devem ser respeitados os direitos fundamentais das pessoas. De modo específico, o Sínodo falou do direito à justa retribuição de todos os que trabalham em prol da Igreja, incluindo os direitos trabalhistas comuns em cada nação e as perspectivas de desenvolvimento humano e profissional. Falou também da participação das mulheres na vida comunitária e nas responsabilidades da Igreja. Afirmou igualmente a liberdade de pensamento e de sua expressão, assim como o direito de todos os fiéis a serem ouvidos pelas autoridades eclesiásticas. Insistiu ainda nos princípios de segurança jurídica, tanto no âmbito penal quanto no processual, e manifestou o desejo de participação dos fiéis leigos também nas decisões da Igreja. Sem dúvida, tudo isto já se encontrava, de algum modo, no Concílio, mas o Sínodo significou um novo impulso para que os codificadores não deixassem de lado tais princípios. Se examinarmos com atenção o Código, porém, veremos que realmene não atingiu essa meta e que seria necessária uma reforma profunda par dar resposta a tais anseios.
C) Associações de fiéis, movimentos eclesiais e pluralismo de espiritualidades
A legislação sobre as associações de fiéis é uma das partes que mais chamaram a atenção, quando da promulgação do nosso corpo legal. Ao lado da enxuta e obsoleta classificação do Código de 1917, o nosso parece abrir uma nova perspectiva sobre o exercício, no interior da Igreja, de um direito natural, o direito de associação. Mas hoje percebe-se que seria necessário dar um passo ulterior, especialmente em relação ao que costumamos chamar de movimentos apostólicos complexos, os quais não se enquadram nem no que está previsto para as associações de fiéis, nem nas diversas formas de vida consagrada. Estamos diante de um fenômeno análogo ao que aconteceu na Baixa Idade Média, com o surgimento dos mendicantes. Ninguém sabia onde enquadrá-los, embora fossem uma realidade viva na Igreja. Não são raras atualmente as queixas de fundadores e membros desses movimentos que brotam do sopro do Espírito e representam um fator de variedade e juventude na Igreja, mas que encontram fortes resistências em determinados setores da Igreja. No caso dos mendicantes, foi necessário recorrer a novos mecanismos jurídicos, considerando as ordens nascentes como dependentes do Bispo de Roma e dando-lhes assim uma forte autonomia em relação aos episcopados locais. O que devemos fazer hoje com movimentos que, não só acolhem, mas também pretendem formar diáconos e presbíteros inteiramente dedicados a susas tarefas apostólicas? As experiências de seminários próprios nem sempre foram bem sucedidas, mas não podem ser ignoradas. Já no tempo de João Paulo II foi anunciada a elaboração de uma lei peculiar sobre esta matéria, mas até agora desconhecemos o andamento dela.
D) O exercício da Colegialidade Episcopal
Na concepção do Vaticano II, um eixo fundamental foi a doutrina sobre a o Colégio Episcopal e a sua função no governo da Igreja. Mesmo com a correção imposta pela “Nota Explicativa Prévia”, acrescentada por vontade expressa de Paulo VI ao texto aprovado na aula conciliar, a Constituição dogmática Lumen Gentium deixa claro que a colegialidade episcopal não se restringe a um mero “afeto colegial”, mas que é um elemento permanente no governo da Igreja Universal. O Código de 1983, nos cânones 336-338 reconhece essa realidade, mas deixou na incerteza completa a sua efetivação. Poderiam passar séculos, não só sem a convocação de um Concílio Ecumênico, mas inclusive sem que seja solicitada a ação conjunta dos bispos espalhados pelo mundo inteiro, no exercício ordinário da colegialidade.
O Sínodo dos Bispos, instituído por Paulo VI[9], tal como está regulamentado do Código, é um organismo auxiliar do Romano Pontífice e não uma expressão da colegialidade episcopal. Por isso, o fruto de suas discussões não é recolhido num “documento sinodal”, mas em exortações apostólicas “pós-sinodais”. Está bem longe de assemelhar-se a uma assembleia legislativa.
As Conferências Episcopais ficam restritas, na legislação codicial, a “certas funções pastorais”[10]. E os organismos continentais, como o CELAM, mereceram, da parte do legislador, apenas uma vaga menção: “Sejam estimuladas as relações entre as Conferências dos Bispos, principalmente entre as mais próximas, para promoção e tutela do maior bem”[11]. Por isso, do ponto de vista estritamente jurídico os documentos do CELAM, mesmo tendo sido revistos pela Santa Sé, possuem uma obrigatoriedade bem questionável. Talvez seja a América Latina o continente onde mais se percebe a necessidade de uma evolução ulterior dessas estruturas supranacionais.
[9] O Sínodo dos Bispos, como organismo representativo do Episcopado católico, foi solicitado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, no n. 5 do Decreto Christus Dominus. Paulo VI se adiantou à aprovação desse documento pelos Padres Conciliares e, pelo Motu Proprio Apostolica Sollicitudo, de 15 de setembro de 1965 (AAS 57, 1965, pp. 775-780), determinou a existência, natureza e composição desse organismo.
[10] Cf. cân. 447.
[11] Cân. 459 § 1.
Prolongando a reflexão nesse sentido, podemos perguntar-nos se não seria conveniente um maior pluralismo entre as diversas regiões da Igreja latina. Não se trata aqui, propriamente, de uma reforma que brote mediatamente do Vaticano II. De fato, o Concílio não tocou na quase uniformidade da Igreja ritual majoritária. E não parece desejável, porenquanto, chegar à variedade existente dentro da multiplicidade de igrejas orientais católicas. Mas a solução encontrada para os tradicionalistas lefrebvianos e para os anglicanos tradicionalistas aponta para caminhos insuspeitos, cujos limites somos incapazes de enxergar atualmente.
5. Conclusâo
Haveria muitas outras observações a serem feitas como, por exemplo, as formulações ambíguas dos direitos dos fiéis. Num espaço limitado, não se conegue dizer tudo. O que dissemos até agora mostra que seria muito conveniente uma revisão completa do Código, para adequá-lo melhor à mentalidade surgida do Concílio Vaticano II. Uma revisão na qual o Sínodo dos Bispos poderia ter o protagonismo.
Autor
Jesus Hortal é sacerdote jesuíta. Licenciado em Direito pela Universidade de Salamanca. Doutor em Direito Canônico pela Universidade Gregoriana. Foi Reitor do Colégio Cristo Rei (Faculdades de Filosofia e Teologia), em São Leopoldo, de 1975 a 1978; Diretor do Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, da PUC-RS (1981-1985). Reitor da PUC-Rio (1995-2010) e da UCP (2012). Desde 1968, lecionou Direito Canônico, especialmente Direito Matrimonial, em diversas Faculdades e Universidades Brasileiras. Atuou também no campo da justiça eclesiástica. É membro fundador da Sociedade Brasileira de Canonistas. Autor de numerosos livros e artigos nesse mesmo campo, entre eles o primeiro Código canônico anotado. Participou da assessoria jurídica da Conferência Episcopal Brasileira.