« Um fórum de teologia para resistir, esperar e inventar »

by Luiz Carlos Susin


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Quando teólogos e teólogas saem de seus gabinetes e se postam literalmente na rua, no movimento e na marcha, sabendo firmemente que “o Espírito é movimento”, suas pesquisas e trabalhos podem bem abraçar o slogan do Fórum Social Mundial de Montréal, de agosto de 2016: un autre monde est nécessaire, ensemble il devient possible. O Fórum Mundial de Teologia e Libertação que acompanha o Fórum Social Mundial acrescentou ao slogan: résister, espérer, inventer. De fato, a resistência, a esperança e a criatividade são o caminho de libertação para que a teologia, a fé cristã, as práticas religiosas, nesse tempo de aceleração do capitalismo e de suas consequências, não derivem para o cinismo a respeito do qual nos alertava com clarividência Hugo Asmann nos começos da Teologia da Libertação. Sobre o que aconteceu no coração do verão de 2016 em Montréal, seguem aqui algumas informações com algumas reflexões.

Esta 12ª edição concentrada do Fórum Social Mundial – em alguns anos acontece de forma descentralizada – depois de Porto Alegre, Nova Délhi, Nairóbi, Belém, Dacar, Túnis, foi realizado pela primeira vez no “norte” do planeta. Nas palavras de Carminda MacLorin, mediadora da proposta de Montréal, “o paradigma norte x sul está mudando e não se pode considerar da mesma maneira. Há norte no sul e há sul no norte. Temos um sistema que é transversal, neoliberal, capitalista, que tem efeitos nefastos tanto no norte, quanto no sul”. Não foi difícil para os participantes do sul que mergulharam nos problemas do norte reconhecer que estamos todos num mesmo planeta, com sociedades atravessadas por consequências econômicas, políticas, culturais e espirituais que derivam de raízes comuns, e que caminhos de libertação só podem ser eficazes se forem comuns. Desde as origens, o Fórum Social Mundial é contraponto ao Fórum Econômico Mundial que sempre acontece nas montanhas geladas da Suíça, em Davos. É preocupante que a economia de mercado governe inteiramente soberana sobre a política das nações. Em Montreal o fórum gritou que outro mundo não é só possível, mas é necessário. Resistir de forma criativa e ativa é necessário.

E a teologia tem o que pensar, se não quiser se tornar cínica ou esquizofrênica. Em Montréal o Fórum Mundial de Teologia e Libertação chegou à sua sétima edição. Ele se insere no processo do Fórum Social com o objetivo de escutar, buscar inspiração, partilhar. Além da representação dos diversos continentes, coordenada pelo Conselho Permanente com secretaria em Porto Alegre, teve a liderança local dos professores Denise Couture e Jean-François Roussel, do Centro de Estudos de Teologias Contextuais do Québec, da Universidade de Montréal, membros do Conselho Permanente. Contou com o apoio de uma centena de voluntários para a organização dos dias de atividade antes e depois da edição do Fórum Social e para a inserção das oficinas dentro do Fórum Social. A excelente organização se deve a um fator histórico e outro bem atual: 1. O Canadá, e no caso específico, o Québec, tem uma longa história de movimentos e lutas sociais, nos quais a Igreja, também por razões históricas, mesmo com as marcas da ambiguidade, atuou e continua atuando de forma marcante. 2. O fórum se organizou com a parceria e o protagonismo da Rede Ecumênica Justiça, Ecologia e Paz (Reseau Oecumenique Justice, Écologie et Paix – ROJEP) e o suporte local de Développement et Paix, de dezenas de comunidades religiosas, Igrejas, Faculdades de Teologia, e muitos voluntários.   

Para quem veio de outras regiões do planeta, uma boa surpresa do fórum teológico foi a participação inquieta e viva de jovens como de pessoas de cabelos brancos. Não foi apenas uma presença ecumênica no sentido cristão. A oração de bênção e as boas vindas “ao território Mohawk” nos foram estendidas por um líder religioso mohawk. Reconhecemos imediatamente que, antes de Montréal ou sul do Canadá, estávamos no ancestral território do povo mohawk sem as atuais fronteiras entre Canadá e Estados Unidos. Visitamos uma de suas aldeias, fomos recebidos na Casa longa, casa de reunião e celebração, como também no santuário que conserva a memória da santa mohawk, Kateri Tekakwitha. 

Este contexto ancestral situou o trabalho da teologia em um dos principais eixos das oficinas, tanto internas como as que foram oferecidas pela teologia no espaço do Fórum Social: a relação histórica e atual com os povos autóctones no Canadá e mundo afora. Uma teologia crítica e autocrítica, com análises pacientes de desconstrução, tomou um perfil mais definido num trabalho ainda intenso de descolonização. Mesmo para espíritos mais inquietos, que preferem um trabalho mais construtivo e pós-colonial, juntando os recursos culturais e religiosos dos povos autóctones às fontes do cristianismo, é necessária essa paciência da descolonização, arcando com as diversas consequências. Por exemplo, a responsabilidade por um passado de educação violenta ou ao menos portadora de ambiguidades, no caso das escolas missionárias para indígenas, ou a consequência da atual secularização na região, ainda que a secularização tenha múltiplas causas e seja avaliada de diversos modos. Mas em termos de povos autóctones, os processos de superação da marginalização, de autoafirmação, comportam um espectro de frentes, que vão do território à religião. E, nesse caso, não só a religião, mas o território, atualmente mais ameaçado do que a própria religião, clama por uma compreensão teológica. 

Nessa conjunção de religião e território, os povos indígenas nos conduziram a um segundo eixo, que desafia a todos: a ecologia. Em múltiplas oficinas do Fórum Social as informações e estatísticas vindas das mais variadas regiões do planeta coincidiram espantosamente num ponto: justamente em tempos de maior consciência dos grandes desafios ecológicos que vamos ter que enfrentar, há uma aceleração estatística absurda do extrativismo de todo tipo: mineral, de energia fóssil, florestal, hídrico, com aumento de monoculturas, violência e expulsão de povos originários. Conjugada a essa loucura global, há uma tendência também global a aumentarem governos e legisladores mais conservadores e nacionalistas que se importam menos com o ambiente global, que põem seus interesses nacionais econômicos e militares acima dos sintomas ecológicos, tornando a “conversão ecológica” e as ações globais quase um sonho a virar pesadelo. O exemplo mais exasperante nos foi dado pelos próprios canadenses conscientes da responsabilidade de seu país por parcela importante da mineração mundial, dentro e fora do país, desequilibrando ambientes, arruinando biomas, contaminando sobretudo as águas e adoecendo severamente os povos atingidos. Tudo isso bem documentado criou mais do que um impacto, uma ferida que faz o pensamento doer. Neste ponto, jovens e mulheres tiveram uma voz mais contundente dentro do próprio fórum social. E isso nos leva ao terceiro eixo, ao feminismo e ao que se chamou de “intersecção de opressões”.

Pareceu um sofisma ou uma meia verdade tanto no contexto do fórum social como no fórum de teologia o slogan pós-moderno de que acabou o tempo da igualdade, pois agora é o tempo da diversidade. Na verdade, o que nasce nesses ambientes é a convergência da diversidade e a reciprocidade de reconhecimento. Representantes de movimentos feministas, vozes de teologia feminista e de diversas minorias, elaboram pontes entre os que estão submetidos a diferentes opressões. A convergência permite uma frente comum de desconstrução de falsas hierarquias arraigadas nas sociedades, de caráter patriarcal e kiriarcal, que atingem todo tipo de minorias. A convergência e a reciprocidade foram testemunhadas no fórum teológico inclusive de forma inter-religiosa, colocando os tesouros religiosos disponíveis para uma real construção da paz com justiça. Ainda que o espaço do fórum seja modesto quando se olha para a complexidade de um planeta inteiro, ele tem um caráter de vitrine e de sintoma que dá esperança.  

O fórum de teologia, além de quatro painéis em plenário, trabalhou em oito oficinas internas e vinte e uma oficinas inseridas no Fórum Social Mundial.  Algumas reflexões e alguns desafios à teologia se impõem a partir do fórum de Montréal. Aqui estão resumidos em dois pontos:

  1. O primeiro é mais amplo do que o fórum de teologia e diz respeito ao seu contexto, o Fórum Social Mundial, mas acaba interpelando o fórum de teologia. Em suas quatro primeiras edições, em Porto Alegre e Nova Délhi, cresceu vertiginosamente e entusiasmou também a presença da teologia. Criou certo impacto no Fórum Econômico de Davos e nos senhores da economia. Depois se estabilizou em um discurso e em uma performance que está perigosamente se repetindo. Montréal e a representação canadense ofereceram ângulos novos para um caminho que parece ter se tornado mais difícil. Mas, há mais tempo, alguns movimentos importantes deixaram de participar do Fórum Social Mundial, como a Via Campesina e a Marcha Mundial das Mulheres. O fato é que o fórum social tem problemas de surgimento de novas lideranças, de sangue novo, de protagonismo de novas gerações, como muitos dos movimentos que o compõem. O risco é o de passar de fórum a instituição. Mas isso vai depender dos movimentos sociais e de sua abertura global.
  2. Não só a América Latina, que leva a fama, mas de diversos continentes e da diversidade de contextos e movimentos nasceu o que chamamos Teologia da Libertação, e que pode ser por isso reconhecida como a primeira teologia realmente planetária, podendo receber outros predicados ao seu título: negra, feminista, queerdalit, minjung, ecológica, animal… Mas o desafio epistemológico não é só frente à desconfiança do pensamento tradicional conservador. As “epistemologias do sul”, justo pela primeira vez num fórum no norte, viram-se desafiadas a se superarem num trabalho árduo de reconhecimento e convergência planetária, inter-religiosa, que necessita ir mais a fundo na descolonização e na libertação global, pontilhada por uma diversidade em rede, libertação sem a qual não há evangelho para os pobres e nem para todos.

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