« Ernesto Cardenal »

por Faustino do Couto Teixeira


Será infinito el que yo amo
pero sin sentirlo de infinitos amores
con amantes infinitos
sino mi amado es mío solamente.
Infinito es pero infinitamente mío.
En lo referente al amor Dios no es uno.
Hay infinitos Amados, uno para cada uno.
Yo lo sé. Yo tengo el mío.
Yo lo conosco, y él infinitamente
me conoce.[1]

Mi felicidade fue poca. La soledad es total.
Yo quien un día fui tan romântico enamorado:
abrazar sin brazos, amar sin emociones.
Dulce sería llorar pero es retórico.
Tal vez te gustó lo romântico y enamorado.
De entre cien mil me esgogiste.
Atrás quedaron los epigramas y las muchachas.[2]

Um dos mais importantes e originais místicos de nosso tempo é Ernesto Cardenal (Manágua, 1925). Um traço nem sempre percebido em sua trajetória é sua mirada místico-poética. É onde sua veia singular se manifesta de forma mais viva e ousada. Estamos diante de um grande personagem, cuja percepção poética vem marcada pelos acontecimentos cotidianos, pelas pessoas e coisas, numa tessitura de fina sensibilidade. Tudo envolvido por um lindo “hino ao amor”, um “canto à vida” como pontuou com acerto Thomas Merton, na apresentação de uma das obras inaugurais de Cardenal, Vida no amor.

Um dos grandes dilemas de sua vida foi lidar com dois grandes amores: Deus e as Mulheres. Estava, porém, “condenado a ser de Deus”, como diz em suas memórias. Em passagem de sua obra, Cântico Cósmico (1992) sublinha: “Eu tive uma coisa com ele e não é um conceito”. Sua mística revela uma forte intimidade com o divino, sendo a linguagem erótica a única possível para expressar o toque dessa união, de um rosto com o outro. Celebra a alegria de “estar enamorado”, e se lança sem medo nos braços do Outro. Sabe, sem dúvida, que lá no fundo do próprio ser, para além de si, o que existe é esse Alguém.

A relação que se estabelece não é convencional. Quebram-se todos os roteiros e protocolos, numa alma que se mostra sedenta de um contato novidadeiro. Para ele não importa saber a lógica que anima a sua oração, se é de quietude ou de união. O que vale mesmo é a cadência íntima, clandestina, de um encontro amoroso. Anseia com todas as suas energias por um amor “que não envelheça”, um amor que escape aos passos convencionais, um amor que brote das mais fundas entranhas e revolucione todo o ser. O ritmo que vigora é de familiaridade. E o poeta indaga: “Como será aquele dia quando dirás Ernesto”. É algo que envolve e eriça todos os sentidos. E o Amado se diafaniza por todo canto, não dá trégua. O poeta recorda a noite estrelada na Ilha de Vancouver, quando ao abrir as janelas do hotel, diante da deslumbrante paisagem, vislumbra a tenra acolhida do Amado: Eram tantas as estrelas naquela noite “e me beijavas com todas elas”. Não há segredos entre os amantes, reconhece bem Cardenal. Os sabores são ternamente partilhados na singular ceia de um encontro.

Interessante é perceber que ele “abandona” as muchachas de sua história para abraçar um amor maior, um “amor transcendido”,  mas elas permanecem vivas no desenho essencial de sua percepção mística. Elas prosseguem com ele, facultando um traço original na sua ocular mística. Escolhe um “amor sem lábios e sem peitos para tocar”, mas leva para a experiência o toque radicalmente feminino de sua experiência anterior. Nas mulheres capta o lindo reflexo de Deus, mesmo que fragmentado ou contingencial.É o amor humano que se revela como ponte para o amor maior, sinalizando uma transparência bonita daquilo que busca expressar com a pena do desejo. A transparência, em seu significado mais profundo – reconhece o poeta – não é senão “um não ser para que passe a luz”.

Aprendeu também com Thomas Merton na Trapa a vibração zen da experiência do Mistério, que habita em todo lugar. Isto depois de uma “devastadora” experiência de conversão, em junho de 1956, quando foi tomado pela presença de Deus, mesmo não estando ainda enamorado. Resiste a falar sobre essa experiência, o que só ocorre dez anos depois, em sua obra Vida no amor. É uma presença arrebatadora, da qual não se pode esquivar, e que provoca uma doçura intensa, mas também uma afogada agonia, a ponto de exclamar: “basta, basta! Não me faças gozar mais, se me amas, porque eu morro!”.

Descortinou-se para ele na Trapa um aprendizado singular da vida contemplativa, entendida como a vida do dia a dia. O contemplativo vive, simplesmente, como o peixe na água, dirá depois em suas memórias. É esse ritmo do cotidiano, nos pequenos detalhes de cada dia, que enseja sua visada espiritual. Partilhou com Merton o significado profundo de uma vida contemplativa inserida no tempo, dando-se conta que a vida espiritual não pode estar separada de nenhum interesse humano.

É uma mística que se abre igualmente para o cenário maior de todo o cosmos, com suas malhas de interconexão, como indicou com precisão em seu Cântico Cósmico.  Com sua peculiar sensibilidade e atenção vislumbra no mundo real o enigma escondido, de um outro mundo que habita ali, que deixa transparecer aquela força misteriosa que conecta cada indivíduo com o todo.

Somos como essas dos palomitas de San Nicolás
que cuando una se corre
la otra va detrás
Y cuando ésta es la que huye
aquélla la sigue
pero nunca se aleja la una de la otra
siempre están en pareja.
Cuando vos te me vas
yo voy detrás de vos
y cuando yo soy quien me voy
vosvas detrás.
Somos como essas dos palomitas
de San Nicolás.[3]


[1] Ernesto CARDENAL. Telescopio en la noche oscura. Madrid: Trotta, 1993, p. 35

[2] Ibidem, p. 56.

[3] Ernesto CARDENAL. Cántico Cósmico. 3 ed. Madrid: Trotta, 1999, p. 391.


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