« Algumas considerações sobre a poética de Adélia Prado »
por Cleide Oliveira
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A poeta mineira Adélia Prado é hoje conhecida como uma das vozes mais eloquentes da literatura brasileira, com uma obra poética que conjuga, de forma surpreendente, uma religiosidade com forte apelo místico e um erotismo que tende ao sagrado. Unindo os vértices mística e erotismo, seus escritos também propõem uma reflexão pungente sobre a temporallidade, não apenas a humana, mas a de tudo que é. A morte das gentes, das coisas e dos afetos é tema e motivo que percorre a poesia e a prosa de Adélia, para quem “A grande tarefa é morrer”[1]. Portanto, é pertinente afirmar que o erotismo, a experiência místico-religiosa e as considerações sobre a morte e o morrer são os arcabouços que constroem a obra adeliana que, mesmo quando em prosa, é principalmente poética.
Nesse curto ensaio sobre a poeta quero propor um percurso sobre esta “tríade” temática que marca fortemente sua obra, tríade que se torna explícita na afirmação do sujeito poético: “É em morte, sexo e Deus que eu penso todo dia”[2].
Antes de tudo, porém, penso ser necessário resgatar a concepção sobre o ofício do poeta e o status metafísico que a poesia assume em Adélia pois, em sua obra, quer na prosa, quer na poesia, há uma clara consciência desse aspecto sagrado da poesia — “rastro de Deus, ar onde ele passou, casa que foi Sua morada a poesia é “[3]. E o poeta, próximo a um profeta bíblico, é aquele que se expõe “relâmpago dos deuses” (Heidegger), exposto ao contato com o sagrado, intermediador entre a Beleza (que é, em Adélia, sinônimo de Deus) e aqueles que se dispõem à experiência estético-religiosa que a arte oferece.
Cabe recuperar na figura do poeta como profeta o sentido bíblico dessas figuras que assumiam o oráculo divino como um destino, um fado, e não como um privilégio. Há que se lembrar de Jonas, por exemplo, fugindo da missão divina e indo parar dentro da barriga de um monstro marinho, permanecendo ali por 3 dias e noites; de Oséias, que recebe a ordem divina de se casar com uma prostituta para que isso servisse de metáfora para a prostituição que Israel praticava com outros deuses; de Isaias, que perambula nu e descalço durante 3 anos para simbolizar a derrocada de Israel sob o domínio dos assírios; de Jeremias, lançado ao calabouço por profetizar a ruína e o cativeiro de Israel; de João Batista, que teve a cabeça cortada pelo Rei Herodes, etc. O poema abaixo, Ave, ávido, exemplifica o que foi dito:
Ave, ávido.
Ave, fome incansável e boca enorme,
come.
Da parte do Altíssimo te concedo
que não descansarás e tudo te ferirás de morte:
o lixo, a catedral e a forma das mãos.
Ave, cheio de dor.
Tudo que é humano, perecível, belo ou horrível fere a esse atormentado por uma fome enorme. Fome do divino? Mas o que alimenta ao poeta é a dor do mundo, que o atravessa e o impede de ficar indiferente ao chamamento a ele direcionado (Ave, avído e cheio de dor).
Por outro lado, ainda que religiosa, sua poesia não é ingênua ou proselitista e a experiência de enfrentamento com o sagrado, à semelhança do que acontece com os grandes místicos Teresa de Avilla e São João da Cruz, se dá no corpo, que se torna porta de abertura para o mistério: “o mistério vai se mostrar através do corpo”, diz-nos uma das personagens de Adélia[4]. A poesia de Adélia é religiosa porque testemunha um pulsar do mistério da vida: “A poesia me faz perceber a pulsação das coisas. Isso é que é poesia, e a isso chamo também de experiência religiosa”[5]. E ao poeta cabe ser portador dessas alvíssaras: “Deus está no telhado. E é para isto só que se nasce, para ver seu rosto terrível nos trespassando de facas”[6].
Permeada pela religiosidade cristã, e católica, com seus ritos e símbolos, a revelação maior que pulsa em sua obra é um discurso da alegria alimentado pela esperança de que a dor do mundo não seja eterna, e que haja, para aqueles que creem e esperam, um lugar onde sejamos todos “exatos e dignos de amor”, como nos diz o poema “O dia da ira”, abaixo transcrito:
As coisas tristíssimas,
o rolomag, o teste de Cooper,
a mole carne tremente entre as coxas,
vão desaparecer quando soar a trombeta.
Levantaremos como deuses,
com a beleza das coisas que nunca pecaram,
como árvores, como pedras,
exatos e dignos de amor.
Quando o anjo pássaro,
o furacão ardente do seu vôo
vai secar as feridas,
as secreções desviadas dos seus vasos
e as lágrimas.
As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
reunidos na praça, à espera de seus nomes.
È bela a imagem que se constrõe no poema: a cidade silenciosa e vazia, as trombetas com seu som magestoso e atordoante, o anjo-pássaro cujo vôo se assemelha a um furacão e os filhos da fé – sem lágrimas e sem chagas – estáticos e solenes esperando os novos nomes (e identidades) que os acompanharão à Jerusalém celeste. Fortemente apocalíptica, a cena impressiona por ser uma espécie de colagem de imagens e figuras bíblicas. Esse é um dos poucos poemas, que eu conheça, que relê o topos bíblico sem distanciamento ou intenção crítica. Parece então que a poética adeliana adere ao princípio paulino de que “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (I Co, 15, 19).
A esperança em novos céus e nova terra não impede que haja em sua obra um belo elogio ao homem-humano e a todas as suas tentativas de construir beleza (que, como dito antes, é espécie de rastro de Deus) e alegria em meio ao caos cotidiano. Essa é uma poesia que tende ao imagético, ao sensível, ao corpo, conjugando de forma inesperada elementos sagrados e profanos com o único intuito de “abrir” o corpo e mundo para a hierofania divina, vejamos mais um poema da autora:
Mural
Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
é seu próprio gosto
em ter uma familia,
amar a aprazivel rotina.
Ela não sabe que sabe,
a rotina perfeita é Deus:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá sua saia,
a árvore a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.
Se a “rotina perfeita é Deus”, é possível experienciar, em meio ao devir constante, a permanência daquele que É, sem passado ou presente. A presença divina, paradoxalmente invisível e não-inteligível à mulher que recolhe os ovos, é sentida nos pequenos e rotineiros gestos de uma dona de casa que “ama a aprazível rotina”. A mulher reza sem palavras, reza por estar inteira e reconciliada ao cotidiano ínfimo, porém epifânico, ao qual pertence.
Se a consciência dolorosa da nossa temporalidade sangra as palavras que compôem a obra adeliana, a possibilidade de experienciar o transcendente na imanência do existir – geralmente em gestos, eventos ou cenários despidos de toda solenidade -, bem como uma insistente alegria que se alimenta da adesão à fé cristâ são o arcabouço teológico e filosófico que sustentam toda a obra adeliana.
Para terminar essa breve exposição quero agora chamar à reflexão o terceiro topos temático que afirmei compor a tríade adeliana: o erotismo. O poema a ser lido é um dos mais conhecidos da autora, não sem razão, pois concentra elementos centrais das reflexões teológicas que aparecem em sua poética:
Festa do corpo de Deus
Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão:
“Ó crux ave, spes única
Ó passiones tempore”
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.
è próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
e a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com este embuste.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor do corpo, amor[7].
O corpo de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, está em festa, mas em cena da crucificação? Festa porque anuncia a salvação por amor, e convida a uma revisão dessa moral de fundamento platônico que entende ser o corpo fonte de pecado e impureza, além de empecilho tanto à vivência da via contemplativa (espiritual) quanto da via especulativa (ciência). O sujeito poético, que contempla o corpo nu do Cristo na cruz, alerta para a existência do embuste que é a culpabilização do corpo, embuste por meio do qual “os demônios por séculos porfiam em cegar aos humanos”. Mas há também um mistério e uma descoberta. O mistério é o corpo desse deus que se torna carne e sangue, desnudando-se de toda sua plenitude para se tornar fraco, impotente e cheio de demandas. A descoberta da temporalidade do corpo de Cristo – que afinal tem, quem diria, “um par de nádegas!”, é considerada mais importante que a grande revelação de IHWH à Moisés, revelação que foi um dos eventos principais na formação da religiosidade judaico-cristã. A descoberta, que advém da exposição do corpo do Cristo na execrável cruz, é a da inocência da carne e das potências inauditas do amor: um amor que se dá no corpo, e não apesar dele.
E é a poesia a paixão desse deus-homem desmantelando o embuste demoníaco e revelando o fato surpreendente – mais surpreendent, talvez, por ainda nos impressionar – da corporalidade do Cristo. A inocência do corpo divino nos revela, de repente, a inocência de nosso próprio corpo, e torna possível a admirável descoberta de que
Súbito é bom ter um corpo pra rir
E sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
Alegre do que triste. Melhor é ser[8].
Referências bibliográficas
Oliveira, Cleide Maria de. Revista Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 25, p. 105-120, jan./mar. 2012.
Prado, Adélia. Poesia Reunida. São Paulo: Arx, 1991.
Prado, Adélia. Prosa Reunida. São Paulo: Siciliano, 1999. PRADO, Adélia. Entrevista. Cadernos de Literatura Brasileira – Adélia Prado. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2000.
[1] Poema Campo santo, in: O coração disparado, Prado, Adélia, Poesia Reunida, 1991.
[2] O artigo “Erotismo, mística e morte: a tríade adeliana” (vide bibliografia) desenvolve com maior profundidade o tema.
[3] Trecho do livro de contos Solte os cachorros, Prado, Adélia, Prosa Reunida, 1999.
[4] O homem da mão seca, in: Prado, Adélia. Prosa Reunida, 1999, p. 339.
[5] Entrevista, in: PRADO, Entrevista. Cadernos de Literatura Brasileira – Adélia Prado.
[6] Os componentes da banda. Prado, Adélia. Prosa Reunida, 1999, p. 149.
[7] Poema Festa do corpo de Deus, in: Terra de Santa Cruz. Prado, Adélia. Poesia reunida, 1991.
[8] Poema Momento, Bagagem, in: Poesia Reunida, 1991.