Luiz Kohara

« Periferia no centro »


A cidade de São Paulo, a mais rica do País, é a expressão cabal das contradições geradas pelas desigualdades econômicas, sociais e territoriais, configurando nos espaços urbanos, realidades extremamente contrastantes. De um lado, regiões ou “centros” com infraestrutura urbana, serviços públicos, disponibilidades de atividades culturais e qualidade ambiental, de outro lado, as “periferias” distantes das áreas com maior disponibilidade de trabalho, sem serviços públicos adequados de educação, saúde, assistência social, lazer, cultura e transporte público, com infraestrutura precária de saneamento básico e água potável. 

A população da cidade de São Paulo despende, em média de 2,42 horas por dia na locomoção entre moradia e trabalho. Entretanto, para a grande parcela dos que residem nas periferias mais distantes, esse tempo supera quatro horas diárias, que significa sacrificar o desenvolvimento escolar, a convivência familiar, o lazer e o tempo para outras necessidades. Além, do alto custo para locomoção. Assim, devido às dificuldades de mobilidade urbana as populações periféricas mais pobres vivem exiladas na própria cidade.

Para a população pobre, morar nas distantes periferias, sem infraestrutura adequada, significa também maior risco de serem vítimas da violência. Inúmeros estudos demonstram que as regiões que concentram a violência são aquelas onde não há presença do Estado para atender às necessidades básicas das populações. As áreas segregadas e fragilizadas em que jovens têm baixa oportunidade de inserção social vêm sendo ocupadas por organizações criminosas, as quais, em muitos casos, possuem relações promíscuas com agentes da segurança pública, fazendo com os moradores vivam sempre em condições de insegurança. Em 2016, ocorreram mais de 62 mil homicídios nas cidades brasileiras (IPEA, 2018, p. 93), atingindo, em sua maioria, jovens afrodescendentes que viviam em áreas segregadas e com concentração de pobreza.

Na cidade de São Paulo, a chance de um morador de um bairro na periferia com concentração de pobreza sofrer homicídio é de 43,3 vezes maior que um morador de um bairro onde concentra a população com alto poder aquisitivo. Essa mesma comparação entre bairros em relação à expectativa de vida, a diferença é de 23,7 anos, respectivamente, 55,7 anos e 79,4 anos[1].  Essas desigualdades repercutem nas diferenças econômicas familiares e nos serviços públicos instalados nos territórios. Dentre as 31 subprefeituras[2]., as sete localizadas na região central da cidade concentram 2/3 dos leitos de hospitais e 2/3 dos empregos formais disponíveis na cidade. 

A expansão urbana de forma desordenada, conforme os interesses do setor imobiliário, tem dispendido grande parcela dos recursos públicos para áreas já valorizadas ou a serem valorizadas, em detrimento as necessidades sociais das populações mais pobres, além de favorecer concentração fundiária e a desigualdade urbana. No município de São Paulo, 1% dos proprietários (22.400 pessoas) concentra 25% de todos os imóveis registrados na cidade, o que significa 45% do valor imobiliário municipal[3].

A desigualdade na cidade também está expressa em relação à qualidade ambiental. As famílias de baixa renda, como não conseguem acessar a moradia no mercado formal, constroem suas moradias em áreas com riscos geológicos, áreas de inundações nos períodos de chuva, áreas em beira de córregos ou áreas comprometidas com contaminação. São áreas sem investimento público em saneamento do esgoto, arborização e praças, com baixíssima qualidade ambiental.

1. A disputa dos pobres pelo centro da cidade

Em São Paulo, as famílias de baixa renda sempre buscaram morar nas áreas centrais da cidade pela facilidade de transporte, maior disponibilidade de trabalhos formais e informais e presença de serviços sociais públicos, como hospitais, escolas, creches, assistência social. Contudo, as alternativas de moradia encontradas pelos trabalhadores de baixa renda no centro são os cortiços[4].

A história do centro da cidade de São Paulo é marcada por disputas entre os interesses de enobrecimento e a presença dos pobres nos cortiços. O centro – local privilegiado para investimentos públicos, concentrando as principais instituições do poder econômico, político e religioso e, também, de moradias e espaços culturais da classe abastada –, não pode ser o lugar de moradia e de convivência da classe popular. Nesse sentido, o poder público, de tempo em tempo, tem lançado projeto de revitalização ou requalificação do centro com objetivos higienistas e de gentrificação social.

Mesmo assim, grande número de famílias de baixa renda mora no centro, até porque há interesses econômicos dos que locam as moradias nos cortiços devido a sua alta rentabilidade; todavia, para continuarem morando na área central permanecem reféns da exploração. O valor da locação de um quarto, de cerca de 10 m2, em um cortiço localizado na região central da cidade[5], é cerca de R$ 800,00, enquanto o valor do salário-mínimo é de R$ 954,00[6]. Devido a essa situação, os moradores de cortiços dizem “se comer não mora, se morar não come”. 

Frente à contradição entre as necessidades da população pobre e a presença de centenas de edifícios abandonados no centro, que não cumprem a função social, conforme a Constituição Federal, grande número de famílias ocupam esses imóveis na área central nos últimos anos. Ademais, no centro, há presença de milhares de pessoas sós e famílias morando nas ruas, calçadas, praças, marquises, baixos de viadutos e em outros locais, sem nenhuma proteção física adequada e sem privacidade, constituindo a expressão mais dramática da vulnerabilidade social, violência e crueldade humana. A população em situação de rua busca essa região pela possibilidade de serviços informais e sobrevivência.

O centro também é disputado por trabalhadores ambulantes que sobrevivem do comércio de rua, na sua quase totalidade, de forma ilegal, porque a Prefeitura não reconhece essa atividade em áreas valorizadas da cidade. É parte da rotina desses trabalhadores perseguições e assédios de agentes públicos.

No centro da cidade de São Paulo tem-se a presença do que poderia ser chamado de uma periferia social. 

2. A atuação do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos (CGGDH) em relação à periferia no centro 

O CGGDH foi fundado em 1988, com a missão de lutar pelos direitos humanos das populações pobres, que moravam nos cortiços ou dormiam nas ruas e, também, aquelas que trabalhavam como catador de materiais recicláveis ou ambulantes, para conquistassem o direito de morar e trabalhar dignamente no centro da cidade. Atualmente, a atuação é em toda a cidade de São Paulo e com diferentes realidades sociais.

As ações do CGGDH sempre foram direcionadas para que as populações, vítimas da exclusão social, organizem coletivos, como os movimentos de moradia, da população em situação de rua, dos catadores de materiais, os fóruns dos ambulantes e as associações de luta por direitos, para incidência nas políticas públicas e busca de alternativas para melhoria das condições de vida. 

Nessa atuação para conquista dos direitos, com o fortalecimento das organizações populares, há importantes avanços dentre os quais se destacam: os governos municipal, estadual e federal implementaram programas de habitação de interesse social no centro da cidade, atendendo, nos últimos 20 anos, mais de cinco mil famílias que residiam em cortiços e ocupações; milhares de famílias através da defesa jurídica e incidência nas instituições públicas, estes garantiram o direito da posse da moradia; centenas de pessoas em situação de rua conseguiram inserção social, deixando a rua; foram constituídas cooperativas de catadores de materiais reaproveitáveis autônomas que trouxeram melhorias da renda aos cooperados; implementação de políticas sociais públicas para a população em situação de rua possibilitando maior inserção social; os trabalhadores e as trabalhadoras ambulantes passaram a lutar pelo direito ao trabalho digno de forma coletiva assegurando melhores condições de trabalho; as violências policiais contra as populações mais pobres foram enfrentadas; foram feitas contribuições nas políticas de desenvolvimento urbano no sentido da inclusão social e sustentabilidade ambiental.

Há imensa periferia de pobreza no centro da cidade. Os desafios são muitos! Todos os avanços obtidos tiveram participação da população e muitas experiências de solidariedade mútua. As melhorias das condições da moradia e de trabalho têm possibilitado que filhos dos beneficiários, por exemplo, acessem as universidades e as famílias vivam com dignidade. As conquistas que o Gaspar Garcia vem contribuindo apontam que é possível os pobres viverem dignamente no centro.

Esta caminhada junto à periferia no centro da cidade é animada pela fé e esperança por um mundo mais justo e fraterno.

Bibliografia 

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais 2017. Caderno Estudos & Pesquisas: informação demográfica e socioeconômica – 37. Disponível em:

<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101459.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2018.

IPEA; FBSP. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência 2018.Brasília: IPEA (2018). 

OXFAM. Relatório A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras. OXFAM Brasil (2017). Disponível em: <www.oxfam.org.br>. Acesso em: 20 jul. 2018. 

REDE NOSSA SÃO PAULO. Blog.  2 ago 2016. Disponível em: <https://www.nossasaopaulo.org.br/noticias/nossa-sao-paulo-apresenta-balanco-do-plano-de-metas-e-mapa-da-desigualdade-atualizado>. Acesso em: 19 ago. 2018. 


Notes

[1] O estudo Mapa da Desigualdade (2017), realizado pela Rede Nossa São Paulo, aponta diferenças extremas entre os distritos periféricos onde residem famílias de baixa renda e distritos residem famílias de alta renda da cidade.

[2] A cidade de São Paulo possui 31 subprefeituras, constituídas de 96 distritos.

[3] Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,1-dos-donos-de-imoveis-concentra-45-do-valor-imobiliario-de-sao-paulo,10000069287>. Acesso em: 15 ago. 2018.

[4] Os cortiços são imóveis transformados em moradias coletivas que, em geral, eram unidades unifamiliares; conforme as dimensões dos imóveis vivem várias famílias. As condições ambientais dentro do quarto no cortiço são de insalubridade.

[5] Espaço onde vive uma família que, em média, é formada de três membros.

[6] Em 15/08/18 – 1 Euro = R$ 4,40.

Auctor

Luiz Kohara membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e assessor do Centro de Apoio a Iniciativas Sociais (CAIS).  Educador popular, mestre em engenharia urbana, doutor em arquitetura e urbanismo e pós doutorados nas áreas de sociologia urbana e habitação.

Address: Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Rua Dom Redó, 140, Ponte Pequena, 01109-080 São Paulo – SP, Brasilien.



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