Teologia e o poder da libertação – F. de Aquino J.

Teologia e o poder da libertação

por Francisco de Aquino Júnior



Introdução

Teologia é intellectus fidei e enquanto tal é inseparável da fé: é um momento da fé (dimensão intelectual) e está a serviço da fé (dimensão sócio-eclesial). Na medida em que a fé consiste em entrega confiante a Deus e em fazer a vida de acordo com seu desígnio e na medida em que Deus se revela como salvador-libertador, a fé tem um caráter-dinamismo salvífico-libertador: Um Deus libertador exige uma fé libertadora. E é isso que confere à teologia, enquanto intellectus fidei, um caráter-dinamismo salvífico-libertador no duplo sentido de inteligência de uma fé libertadora e de serviço a uma fé libertadora. Por mais irredutível que seja enquanto atividade intelectual, o poder de libertação da teologia é inseparável do poder de libertação da fé. Daí o vínculo indissolúvel: Deus libertador – fé libertadora – teologia libertadora.

1. Fé e libertação

Enquanto entrega confiante a Deus e configuração da vida a partir de seu dinamismo e de seu desígnio para a humanidade, a fé está constitutivamente referida, determinada e configurada pelo modo de ser/agir de Deus. Ele se revela na história de Israel e na vida de Jesus de Nazaré como um Deus presente e atuante na história (por mais transcendente que seja: transcende na história e não da história) e partidário dos pobres e marginalizados: pobre, órfão, viúva, estrangeiro… (por mais universal que seja em seu amor e em seu desígnio salvífico). Essa é sua marca ou sua característica mais fundamental, a ponto de ser nomeado e conhecido como Deus libertador, como Deus dos pobres e marginalizados[1].

De fato, Deus se manifesta em Israel e em Jesus de Nazaré como um Deus partidário dos pobres e marginalizados (Cf. Jd 9, 11), a ponto de se identificar com eles (Cf. Mt 25, 31-46). Como tanto tem insistido Jon Sobrino, “a relação de Deus com os pobres deste mundo aparece como uma constante em sua revelação […] não é apenas conjuntural e passageira, mas estrutural. Existe uma correlação transcendental entre revelação de Deus e clamor dos pobres”[2]. Isso é constitutivo da revelação, algo que diz respeito ao Mistério mais profundo de Deus. Revelar-se no processo de libertação do Êxodo (e não no processo de dominação do Faraó) e na práxis libertadora de Jesus de Nazaré (e não na práxis dominadora de César) não é mero detalhe, casualidade ou roupagem, mas algo essencial, algo que tem a ver com o Mistério mesmo de um Deus que não pode assumir a “forma” de um Faraó ou de um César (tirano) sem se negar a si mesmo (Libertador – Pai). 

E Ele continua agindo na história através de seu Espírito: o Espírito por meio do qual tudo foi criado; o Espirito que falou/agiu através dos profetas e da sabedoria popular; o Espírito que ungiu, conduziu e sustentou Jesus de Nazaré em sua missão de anunciar a Boa Notícia aos pobres (Lc 4, 18s; At 10, 38). Não por acaso, o Espírito é invocado na Igreja, em um hino muito antigo, como “Pai dos pobres”. E os estudos pneumatológicos na América Latina[3] têm insistido muito que “o Espírito do Senhor atua a partir de baixo”, para usar uma expressão muito cara a Victor Codina.

Essa forma de ser/agir de Deus é determinante da fé. Se fé é adesão confiante e fiel ao Deus que se revelou na história de Israel e na vida/práxis de Jesus de Nazaré, ela está constitutivamente referida, determinada e configurada pelo jeito de ser/agir desse Deus. Não se pode compreender a fé cristã senão a partir e em função do Deus de Israel e de Jesus de Nazaré. E a fé num Deus libertador dos pobres e marginalizados implica e se efetiva como participação em sua ação salvífico-libertadora. Por mais que não se reduza a isso, essa é uma de suas marcas ou características fundamentais. Como afirma o Papa Francisco, “existe um vínculo indissolúvel entre nossa fé e os pobres”[4]. Fora desse dinamismo salvífico-libertador não se pode falar propriamente de fé cristã. E aqui se pode compreender a insistência profética de Sobrino de que “fora dos pobres não há salvação”[5].

Neste sentido, a fé se configura como um modo de vida que introduz no mundo um poder/dinamismo libertador dos pobres e marginalizados: seja denunciando as mais diversas formas de injustiça e opressão, seja defendendo o direito dos pobres e marginalizados. É a dimensão ou o caráter libertador da fé que, de alguma forma, conecta – fortalecendo, justificando, purificando e/ou alargando – com os mais diversos processos históricos de libertação.

É verdade que os cristãos nem sempre foram consequentes com isso ou mesmo manipularam, perverteram e recusaram esse modo de vida, assumindo e fortalecendo processos históricos de dominação e opressão. Isso se pode verificar na Sagrada Escritura e em toda a história do cristianismo. E é algo muito presente nos tempos atuais. Basta ver como os grupos e os governos de extrema direita na América Latina, nos EUA e na Europa se reconhecem como “cristãos” e se apresentam como defensores da “tradição cristã”, justificando “religiosamente” sua política econômica neoliberal, sua aversão aos direitos humanos, suas mais diversas formas de preconceito e racismo e até mesmo seu caráter e suas práticas fascistas e/ou nazistas. O atual governo brasileiro é o exemplo mais claro e transparente de perversão e manipulação da fé cristã: “Brasil acima de tudo; deus acima de todos” e que morram os pobres, afros, indígenas, sem terra, homossexuais, encarcerados etc. E o mais escandaloso é que isso se dá com o apoio e a cumplicidade de amplos setores das Igrejas e de seus ministros…

Mas não se deve esquecer que essa manipulação e perversão da fé sempre foram denunciadas e combatidas pela profecia e pela sabedoria de Israel como verdadeira idolatria[6] (Cf. Is 10, 1-2; Ecl. 34, 24-26). Jesus se insere nessa tradição profético-sapiencial de defesa dos pobres e marginalizados: anuncia a Boa Notícia do reinado de Deus aos pobres (Cf. Lc 4, 18-19; Lc 6, 20-26; Mt 5, 1-12), faz da causa dos pobres critério e a medida escatológicos (Cf. Lc 10, 25-7; Mt 25, 31-46) e, por isso, é crucificado e ressuscitado (Cf. Fl 2, 9-11; At 10, 36-43). E em sua tradição encontram-se todos os que assumem a causa dos pobres e marginalizados, defendem e lutam por seus direitos, chegando até a prova maior do martírio como Oscar Romero e tantos e tantas que deram a vida pela causa dos pobres… Eles desmascaram e denunciam a perversão e instrumentalização da fé pelos grupos dominantes da sociedade e seus aliados e revigoram/dinamizam fiel e criativamente o potencial salvífico-libertador da fé, fortalecendo, sempre a partir das necessidades e dos direitos dos pobres e marginalizados, processos históricos de libertação. Deste modo, a fé aparece sempre de novo como uma fé libertadora que introduz um poder/dinamismo libertador e conecta com processos concretos de libertação no mundo[7].


[1] Cf. Jorge Pixley, A história de Israel a partir dos pobres, Petrópolis: Vozes, 2002; Rinaldo Fabris, A opção pelos pobres na Bíblia, São Paulo: Paulinas, 1991; Gustavo Gutiérrez, O Deus da vida, São Paulo: Loyola, 1992; Ronaldo Muñoz, O Deus dos cristãos, Petrópolis: Vozes, 1989; Idem., Trindade de Deus Amor oferecido em Jesus, o Cristo, São Paulo: Paulinas, 2002.

[2] Jon Sobrino, “Teología en un mundo sufriente. La teología de la liberación como ‘intellectus amoris’”, em: Idem., El principio–misericordia. Bajar de la cruz a los pueblos crucificados, Santander: Sal Terrae, 1992, 47-80, 55.

[3] Cf. Jorge Pixley, Vida no espírito. O projeto messiânico de Jesus depois da ressureição, Petrópolis: Vozes, 1997; Victor Codina, Creio no Espírito Santo. Pneumatologia narrativa, São Paulo: Paulinas, 1997; Idem., “Não extingais o Espírito” (1Ts 1, 19): Iniciação à pneumatologia, São Paulo: Paulinas, 2010; Idem., El Espírito del Señor actua desde abajo, Santander: Sal Terrae, 2015; José Comblin, O Espírito Santo e a Tradição de Jesus. Obra póstuma, São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2012; Leonardo Boff, O Espírito Santo: Fogo interior, doador de vida e Pai dos pobres, Petrópolis: Vozes, 2013.

[4] Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, São Paulo: Paulinas, 48.

[5] Cf. Jon Sobrino, Fuera de los pobres no hay salvación. Pequeños ensayos utópico-proféticos, Madrid: Trotta, 2007.

[6] Cf. Gustavo Gutiérrez, O Deus da vida, São Paulo: Loyola, 1992, 75-93.

[7] Cf. Francisco de Aquino Júnior. Organizações populares, São Paulo: Paulinas, 2018.

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