Agenor Brighenti
«A reforma da cúria romana»
Concilium 2020-1
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Carlos Álvarez Mendoza – Thierry-Marie Courau
Decolonial Theology: Violence, Resistance and Spirituality
Dekoloniale Theologie: Gewalt, Widerstand und Spiritualität
Teologia decoloniale: violenze, resistenze e spiritualità
Teologias decoloniais: violências, resistências e espiritualidades
Teología decolonial: violencias, resistencias y espiritualidades
Théologies décoloniales : violences, résistances et spiritualités
非殖民主義神學:暴力、抵抗和靈性
Introdução
No catolicismo, as Igrejas do hemisfério Sul resistem secularmente ao colonialismo de ontem e ao neocolonialismo de hoje, que têm no eurocentrismo a principal causa do centralismo da Cúria romana. Com a eleição do Papa Francisco, os ventos que sopram do Sul puseram a periferia no centro da Igreja católica, tornando imperiosa a necessidade de urgentes reformas para que a Igreja seja realmente universal. Desde a primeira-hora de seu pontificado, o “papa que veio do fim do mundo” pôs em marcha um plano de mudanças substanciais no estilo do papado, no exercício do ministério petrino e, particularmente, na configuração e função da Cúria romana[1]. Diretamente, estão também implicadas mudanças na relação com as Igrejas Locais e as Conferências Episcopais. Em outras palavras, é preciso situar o primado no seio da colegialidade episcopal e, esta, no seio da sinodalidade eclesial. Na base está a renovação do Concilio Vaticano II, que concebeu a Igreja como “Igreja de Igrejas”, em que a Igreja una e única se realiza nas Igrejas Locais (in quibus), em comunhão com as demais Igrejas (ex quibus)[2].
1. Reformar a Cúria: um clamor que vem de longe
O clamor por reformas, que vinha de longe, tornou-se patente nas Congregações dos Cardeais que antecederam o Conclave que elegeram o atual papa reformador. Depois, em sua primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, selou este compromisso: “sinto a necessidade de proceder a uma salutar descentralização” (EG 16). É preciso “pensar também numa conversão do papado”; “uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e sua dinâmica missionária” (EG 32).
O gradativo processo de centralização da Cúria romana se remete à crise do conciliarismo e à Contra-reforma de Trento frente à Reforma protestante, na aurora da segunda metade do segundo milênio.
Tal centralização reforçaria o ultramontanismo, que culminaria com o dogma da infalibilidade do Papa, aprovado no Concílio Vaticano I (1860)[3], fora do contexto eclesiológico no qual o esquema de Ecclesia originariamente havia sido formulado[4]. E como não podia ser diferente, a centralização romana foi progressivamente comprometendo a sinodalidade da Igreja, especialmente entre a Igreja de Roma e as Dioceses, entre o Bispo de Roma e o Colégio dos Bispos, enfim, entre a Cúria romana e as Igrejas Locais, quer reunidas em sínodos, quer em concílios provinciais, dos quais mais tarde surgiriam as Conferências Episcopais.
2. A reforma da Cúria: uma pendência da renovação do Vaticano II
O Concílio Vaticano II fez profundas mudanças na Igreja em todos os campos, ainda que deixando para o papa a tarefa de implementá-las, em especial no âmbito das estruturas. O Papa Paulo VI bem que tentou, mas logo se viu prisioneiro do segmento conservador vencido no Concilio, mas que logo conseguiu o controle da Cúria. O Papa João Paulo II também quis repensar o exercício do Primado, inclusive pedindo sugestões na Encíclica Ut Unum sint, mas sem que desembocasse em alguma iniciativa concreta. O fato é que a Cúria romana, apesar da renovação do Vaticano II, continuou seu processo de crescente centralização, tornando-se cada vez mais instância de poder do que serviço e, em certa medida, também em relação ao Papa. Nas últimas décadas, o centralismo da Cúria atingiu seu nível mais crítico. Escândalos ligados a disputas de poder, corrupção financeira e acobertamentos de casos de pedofilia tornaram-se praticamente explícitos no pontificado de Bento XVI, fator não alheio às motivações que o levaram a renunciar.
O resgate da sinodalidade eclesial pelo Concílio Vaticano II, auto-concebendo a Igreja como Povo de Deus regido pelo sensus fidelium, assim como situando o papa no seio do colégio episcopal como um primus inter pares, pôs em xeque o centralismo da Cúria romana. A concepção de Igreja do segundo milênio, que partia da existência de uma suposta Igreja Universal, que precede e acontece nas Igrejas Locais, da qual o Papa é o representante e o garante, é finalmente superada. Para o Concílio, não existe Igreja nem anterior e nem exterior às Igrejas Locais. A Igreja Local é “porção” (que contém o todo) e não “parte” (parcela) da Igreja católica. A Igreja é uma “Igreja de Igrejas” (Tillard). A Igreja una e única se realiza nas Igrejas Locais (in quibus), em comunhão com as demais Igrejas (ex quibus). Com isso, se explicita o dever da solicitude do Bispo de uma Igreja Local pelas demais Igrejas e se situa o exercício de seu ministério no seio do Colégio Apostólico e o ministério petrino, que preside a comunhão das Igrejas, como um primus inter pares.
3. A reforma de Francisco: o primado da sinodalidade eclesial
As reformas em curso, levadas a cabo pelo Papa Francisco, nada mais são do que a implementação das diretrizes do Concílio Vaticano II no âmbito das “estruturas de comunhão” da Igreja[5]. Como dissemos, no centro está a necessidade de um novo perfil do ministério petrino, que implica também uma reconfiguração, além da Cúria romana, do Sínodo dos Bispos, do Colégio Cardinalício e das Conferências Episcopais. Com relação ao Colégio Cardinalício, pouco a pouco, o Papa vai lhe dando um perfil menos eurocêntrico e mais universal e com o peso que precisam ter as Igrejas do hemisfério Sul, onde radica a maioria dos católicos na atualidade.
Com relação ao Sínodo dos Bispos, a nova Constituição Apostólica Episcopalis communio (18/09/2018) põe este organismo de assessoria ao Primado a “serviço de todo o Povo de Deus”. Faz-se dele “um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação” (n. 1). Daí, segundo Francisco, a necessidade do Sínodo ser menos de bispos e “tornar-se cada vez mais um instrumento privilegiado de escuta do Povo de Deus”, integrado também por “pessoas que não detêm o múnus episcopal” (n. 6). Continua pendente, entretanto, fazer do Sínodo um organismo mais deliberativo que consultivo, assim como o direito de voto às mulheres.
Com relação à reforma da Cúria romana propriamente dita, será preciso esperar a publicação da nova Constituição – Praedicate Evangelium, prevista para breve e que vai substituir a Pastor Bonus de 1988. O esboço da Nova Constituição foi enviado aos presidentes das Conferências Episcopais Nacionais, aos Sínodos das Igrejas Orientais, aos Dicastérios da Cúria Romana, às Conferências dos Superiores e das Superioras Maiores e a algumas Pontifícias Universidades, pedindo que enviem observações e sugestões. Segundo o projeto em estudo, o novo perfil da Cúria, enquanto estrutura extensiva do exercício do Primado, levará mais em conta as demais instâncias a ele relacionadas como são o Colégio Cardinalício, o Sínodo dos Bispos, as Conferências Episcopais, assim como as Igrejas Locais em sua autonomia e comunhão com as demais Igrejas. E como o Colégio Cardinalício e o Sínodo dos Bispos estão mais diretamente vinculados ao serviço do ministério petrino, a Cúria romana passará a ser um organismo, não mais de controle, mas de apoio às Conferências Episcopais e às Igrejas Locais[6]. Com isso, as Conferências Episcopais passarão a ter um peso muito maior do que tem na atualidade, incluído um papel magisterial. Além disso, o projeto acena para uma profunda mudança no grau de importância e na hierarquia dos Dicastérios no seio da Cúria. Ao contrário do perfil atual, em que a Congregação da Doutrina da Fé tem visível proeminência em relação aos demais Dicastérios, as Congregações voltadas para a evangelização, a promoção do desenvolvimento e da paz, assim como ao serviço de proteção aos pobres é que ocuparão o primeiro plano.
A modo de conclusão
Há muitos impacientes com o ritmo das reformas de Francisco. É que ele está privilegiado o processo em relação aos resultados, sobretudo com respeito à participação dos segmentos envolvidos nela. Implantar a sinodalidade por meios não sinodais, é deixá-la à mercê da boa vontade dos que virão. Além de garantir a regulamentação jurídica das reformas, é preciso uma conversão sinodal, pois inovar-se é condição para inovar.
[1] Antonio Spadaro, A. 2013. “Intervista a Papa Francesco”. La Civiltà Cattolica. September 19, 2013. Acesso em 12 de nov. 12 de 2014.
[2] Cf. Hervé Legrand. O primado romano, a comunhão entre as Igrejas e a comunhão entre os bispos. Concilium 353 (2013/5), 71-86.
[3] Cf. Norman. Tanner. Reforma da cúria romana ao longo da história. Concilium 353 (2013/5), 13-23.
[4] Roger Aubert. Vatican I, L’Orante, Paris, 1964, aqui 247.
[5] Cf. Massimo Fagioli. Reforma da Cúria no Vaticano II e depois do Vaticano II. Concilium 353 (2013/5), 24-34.
[6] Thomas J. Reese. Reformando a cúria romana. De uma corte do século XVII a um serviço moderno. Concilium 353 (2013/5), 105-108.
Autor
Agenor Brighenti es doutor em Ciências Teológicas e Religiosas pela Universidade de Louvain/Bélgica, professor de teologia na Pontifícia Universidade Católica de Curitiba, membro da Equipe de Reflexão Teológica do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM). Foi perito no Sínodo da Amazônia, da Conferência dos Bispos do Brasil na Conferência de Aparecida e do CELAM na Conferência de Santo Domingo. Autor de mais de uma centena de artigos em revistas nacionais e internacionais e de dezenas de livros publicados no Brasil e no exterior.
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